Ernesto baixou a porta do bar, como fazia todos os dias. Deixou
destrancada a portinhola de ferro. Precisava resolver alguns
problemas antes de ir embora. O vaso do banheiro estava entupido.
Ernesto havia colado um papel na parede pedindo para que o papel
fosse jogado na lixeira, mas de nada adiantou. A descarga também não
era muito potente. Além do mais, precisava também passar um pano
para tirar a urina que se acumulava no chão conforme aumentava o
número de garrafas vazias sobre as mesas. Senão, ninguém
aguentaria o cheiro no dia seguinte. Nem ele, nem os clientes.
Percebeu que um fio de água corria pela parede e colocou algumas
folhas de jornal no chão para conter o fluxo. Mais uma despesa.
Ernesto trabalhava sozinho no bar. Às vezes pensava em contratar
alguém, mas não tinha dinheiro. Também não tinha
nenhum parente que pudesse ajudá-lo, nenhum filho para dar uma mão
depois da aula. Fora casado, uma vez, e sua esposa costumava
trabalhar no balcão enquanto ele se ocupava dos salgados e ovos
coloridos, na cozinha. Mas não estavam mais juntos. Agora, a única
família que tinha era seu pai, doente e cansado, que mal conseguia
se levantar da cama.
Ernesto abriu o caixa, puxou seu banquinho para o balcão e começou
a contar. Em uma folha de papel, anotava os números que a velha
calculadora lhe dizia. Precisava levar algum dinheiro consigo.
Tinha que passar na casa de seu pai, no dia seguinte, para pagar a
cuidadora – uma gentil vizinha que perdera seu emprego como
auxiliar de enfermagem. O resto, guardaria no cofre.
Ernesto passava as mãos pelos cabelos ralos e grisalhos quando
ouviu um barulho. Fazia algumas semanas que escutava sons estranhos
vindos dos fundos do bar. Da primeira vez, pensou que fosse algum
cliente deixado para trás, bêbado, que se escondera em alguma canto
durante uma brincadeira idiota e ficado por lá. Mas não. Ernesto
revirou o bar durante quase uma hora, olhando mais de uma, duas, três
vezes os cantos mais escondidos. Não encontrou ninguém. “Devem ser
ratos”, pensou, e nunca mais voltou a procurar.
Ernesto, porém, não ficou tranquilo com sua conclusão. Os
barulhos eram muitas vezes altos demais para ratos. Ernesto tinha
medo de que fossem fantasmas ou algo do tipo, mas se apressava em
dizer a si mesmo que isto era bobagem. Estas coisas não existiam.
Mas, então, o quê? No dia seguinte, tudo estava na mais perfeita
ordem. Nem sequer um copo fora do lugar. O que poderia fazer tanto
barulho sem causar um mínimo de desordem?
Ernesto decidiu que era hora de descobrir de uma vez por todas quem
era o responsável por aquela algazarra. Pulou de cima do banquinho
e, dentro da inutilizada cozinha, acendeu todas as luzas do pequeno
botequim. Começou olhando embaixo da pia. Nada. Passou para o
depósito, os banheiros, o canto onde guardava os engradados cheios
de cascos vazios... Nada. Refez o caminho de volta para o balcão,
gritando, chamando, perguntando quem estava lá. Nada. Apertou o
interruptor ao lado da porta da cozinha e as luzes se apagaram. De
costas para a escuridão, sentiu uma mão em seu ombro.
Ernesto virou-se, assustado. Onde antes havia apenas sombras, agora
estava um homem que ele demorou para reconhecer. Era ele. O mesmo
rosto, a mesma altura, as mesmas roupas. Ele próprio. Quase como um
espelho, embora não refletisse os olhos assustados e a boca
entreaberta de Ernesto. Pelo contrário: a cópia parecia calma e
começava a esboçar um sorriso nos cantos dos lábios.
Ernesto começou a sentir um vento frio que lentamente o congelava.
Primeiro, foram seus pés e braços. Pouco a pouco, sentiu o tronco e
o pescoço endurecerem. Não conseguia mais se mover. Então o frio
atingiu seu rosto e começou a abrir caminho por todos os seus
orifícios. Suas narinas queimavam e seus ouvidos doíam conforme o
sopro gelado se estendia para seu interior. Ernesto viu o reflexo
sorrir. Então não viu mais nada.
Ernesto baixou a porta do bar, como fazia todos os dias. Deixou
destrancada a portinhola de ferro. Precisava resolver alguns
problemas antes de ir embora. Enquanto fazia a ronda pelo banheiro e
o caixa, ouvia apenas o silêncio. Não havia mais nenhum barulho. Um
cheiro, porém, se sobrepunha ao do banheiro, cada vez mais fétido
conforme a água suja escorria por entre os azulejos e alimentava os
fungos que cresciam no concreto. O cheiro forte invadiu as narinas de
Ernesto, mas ele não tinha com o que se preocupar. Era só mais um
casco vazio entre os muitos espalhados pelos cantos.
muito bom!
ResponderExcluirMuito bom mesmo!
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