Nós colocamos nossas mãos sobre o copo de vidro que nos
serviria de ponte. Ao seu redor, as letras do alfabeto estavam dispostas em um
semicírculo, complementado pelos números de 0 a 9 e dois pedacinhos de papel que diziam
“Sim” e “Não”.
Também podia ser feito com um compasso, disse a menina do
oitavo ano que nos explicou as regras do jogo na sala de estudos da biblioteca.
Mas o copo é mais seguro. O compasso é muito leve e descontrolado. Acabaria
girando para qualquer lado e as respostas poderiam não fazer sentido.
Nós conhecíamos com moedas, explicamos. Duas caras querem
dizer sim, duas coroas, não e uma cara e uma coroa, talvez.
- O copo dá mais detalhes – ela respondeu.
Nossas casas eram próximas umas das outras. Clarissa morava
no meu prédio e Giovanna, em uma ruazinha sem saída um pouco depois. Íamos para
a escola juntas. E foi na mesa de pingue-pongue do playground do edifício que
nos reunimos para nosso primeiro contato sério com entidades espirituais.
O ritual começava com uma simples pergunta, repetida duas,
três, quatro vezes: “Tem alguém aí?”. Nossos olhos se arregalaram quando o copo
finalmente deslizou pelo tampo da mesa em direção ao pedacinho de papel que
respondia afirmativamente.
- É claro – disse Giovanna. - O que mais ele poderia dizer?
- Nós a silenciamos.
Aos poucos, coletamos informações sobre nosso interlocutor.
Era homem. Morrera com 23 anos, de tuberculose. Era certamente bonito, naquele
estilo do século XIX que aparecia nos seriados de televisão. Ele não nos disse
isso, óbvio, mas era como eu achava que deveria ser. Não conseguia ir embora
para o outro mundo porque seu ódio o prendia ao plano terreno: pretendia
arrastar consigo o maior número de almas que conseguisse, como forma de
expressar sua revolta por ter perecido tão cedo. Quanto mais jovens, melhor.
- Eu não estou gostando disso... - Giovanna voltou a
interromper. E, mais uma vez, nós a silenciamos.
Giovanna era a mais medrosa de todas nós. Gritava sozinha
quando víamos filmes de terror, mesmo no cinema, onde todos riam e viravam para
encará-la tamanho o seu desespero. Após uma sessão de DVD ou de histórias de
terror, muitas vezes dormia na minha casa ou na de Clarissa para não ter que
andar os dois quarteirões que separava seu prédio do nosso, mesmo que ainda
fosse cedo. Logo, foi a que mais sofreu quando o copo começou a formar frases
ameaçadoras, que diziam que jamais voltaríamos a ver nossas famílias, que não
poderíamos ir embora. Com o rosto encharcado pelas lágrimas, Giovanna se jogou
contra a parede, arrancando a mão de cima do copo, trêmula. Clarissa correu
para acalmá-la. Um pouco depois, eu também tentei ajudar.
Na noite daquela sexta-feira, dormi com um sorriso nos
lábios – o resto da gargalhada com que abri a porta de casa. Como elas eram
impressionáveis.
Só fui acordar na hora do almoço, no dia seguinte. Os
lençóis estavam tão quentinhos, o colchão, tão macio. Poderia nunca mais ter
saído dali. Seria capaz de descansar para sempre com os olhos entreabertos,
enrolando-me como um gato nas cobertas. E eu estava com sono. Tinha dormido
tanto, mas era como se nunca tivesse encostado a cabeça no travesseiro.
Mas minha preguiça de fim de semana não teve tempo para se
dissipar naturalmente. Com um sacolejo fraco, porém nervoso, meu pai me
arrancou do meu calmo despertar. Fazia perguntas rápidas e aparentemente
desconexas sobre Clarissa. Se eu sabia onde ela estava; o que tínhamos feito
ontem; se ela costumava andar com alguém estranho, talvez alguém mais velho; se
tinha falado alguma coisa sobre fugir de casa. Mais tarde, enquanto repetia
para a polícia as mesmas respostas que dera a meu pai, finalmente caiu a ficha
de que Clarissa havia desaparecido sem deixar rastros. E talvez nunca mais
voltasse.
Um pensamento correu pela minha espinha, deixando para trás
um rastro dolorido e gelado. Sentada no sofá da sala, não conseguia fazer nada
além de olhar fixamente para a televisão, incapaz de absorver as imagens que
dela emanavam. Não me lembro de ter levantado uma vez sequer, nem ao menos para
is ao banheiro. Acho que não comi, também. Eu apenas encarava o que estava à
minha frente: a tela, os móveis, o nada, o vazio borrado dos meus olhos, o
fantasma da nossa brincadeira. Não tinha mais tato: era incapaz de sentir as
almofadas, o chão, as mãos que seguidamente tocavam meu ombro em busca de algum
sinal de vida.
Meu transe chegou ao fim por volta das oito da noite,
quando o barulho estridente do telefone tornou impossível para mim ignorar o
mundo ao meu redor. Talvez eu já soubesse quem estava do outro lado da linha.
Talvez fosse isso o que eu estava esperando. Com passadas automáticas como as
de um robô, eu caminhei até a cômoda e tirei o fone do gancho. Despreocupada,
com a voz abafada pelos personagens da novela, a mãe de Giovanna me pedia para
avisar sua filha que já era hora de ir para casa. Ela também não tinha voltado.
Acostumados que estavam com as noites que ela passava em minha casa, sua mãe e
seus irmãos não deram por sua ausência.
Quando eu desliguei o telefone, meus pais me envolveram em
um sufocante abraço, acariciando-me, beijando-me e agradecendo a Deus por eu
estar segura em casa. Eles
tremiam e fungavam, contendo o choro que não tinham o direito de compartilhar.
Eu me desvencilhei de seus braços e, sem uma palavra, enfurnei-me no quarto,
batendo a porta atrás de mim. No escuro, sentada em um cantinho empoeirado,
ainda catatônica, eu apertei as pernas contra o peito e deixei a primeira
lágrima escorrer pelo meu rosto. Então a segunda, a terceira, a quarta...
Eu tinha empurrado o copo.