sábado, 5 de janeiro de 2013

O monstro dentro do baú

- E se eu abrir, o que acontece? - ele perguntou.
- Você vai ficando velho, vai ficando velho... e morre – respondeu sua prima, maior e, portanto, mais sabida. Ao menos em teoria.
Os dois passavam o Natal no sítio dos avós, no interior, junto com seus pais e irmãos. O dele era apenas um bebê, enquanto o dela já era adolescente e preferia dormir e ver televisão a brincar com as crianças. Assim, tinham apenas um ao outro para passar o tempo. Vagando pelos quartos inabitados da velha casa, encontraram uma espécie de depósito em que caixas de papelão dividiam espaço com estantes que acomodavam objetos antigos e empoeirados, como o pequeno baú de madeira que ele segurava nas mãos. Sua prima apressara-se em dizer que ele não deveria abri-lo. Que era perigoso. Agora que ele sabia o porquê, estava começando a acreditar, embora não quisesse dar o braço a torcer.
- É mentira!
- Lógico que não é! Todo mundo tem um bauzinho assim e, quando abre, começa a ficar velho. Que nem o vovô e a vovó.
- Mas eles não morreram!
- Às vezes demora um pouco. Um dia, vai ficar tudo escuro e eles nunca mais vão se mexer. É o que acontece com todo mundo que abre o baú.
Ele girou a caixa nas mãos, procurando algum sinal de seus poderes sobrenaturais. Ainda sem ter certeza, perguntou:
- Você já abriu o seu?
- Eu, não! Nem vou abrir. Eu já sei o que acontece. Não vou ser nem burra de fazer uma coisa dessas.
Ele abaixou a cabeça e encarou a caixinha de madeira com as sobrancelhas franzidas. Não era verdade. Não é assim que as coisas são. Ela estava tentando assustá-lo. Ela sempre fazia isto. Que nem daquela vez em que ela disse que melecas eram pedaços de cérebro que escorriam do seu nariz. Era mentira. Claro que era mentira. Mas e se fosse verdade? Não era.
- Você está tentando me assustar!
Ela levantou e deu de ombros enquanto limpava a poeira da calça.
- Você que sabe. Se quiser abrir, abre. Eu vou embora porque não quero ficar de castigo se você morrer.
Ele ouviu os passos da prima se afastarem e tornou a olhar para o baú. Tinha que abri-lo. Precisava provar para si mesmo que nada do que ela havia dito era verdade. Lentamente, levantou a tampa do baú, fazendo ranger as dobradiças rubras e endurecidas. Então a luz se apagou e um barulho de passos ecoou pelo depósito, rápidos como em uma corrida. Enquanto se virava para trás, ele disparou atrás da prima, pronto para puxar uma briga.
Sem que ele notasse, o tempo o seguiu, apertando o passo conforme ele diminuía. Logo, logo, seu corpo estava coberto de rugas e suas articulações doíam. A comida não tinha mais o mesmo gosto. O mundo perdera seu colorido. A música, sua sonoridade.
Deitado em uma cama de hospital, ele olhou com pesar para os pés de galinha no rosto do filho, que dormia na poltrona de visitas. Pensou em sua prima, com quem já não se encontrava nas reuniões familiares. Ela havia morrido em um acidente de carro, fazia tempo. Muito mais do que deveria. Antes que seu olhos se fechassem pela última vez, pensou no quão jovem ela era. Talvez ela nunca tenha aberto o baú, no fim das contas.