Semana
passada não teve post. Em meio a questões para colocar a vida em
ordem, acabei não escrevendo nenhum conto e não terminando as
séries que eu queria terminar para comentar por aqui. Os dias se
passaram e meu ritmo produtivo continuou na mesma estagnação.
Porém, como nem só de obrigações e tédio vive a blogueira,
consegui achar uma brecha no tempo para ir ao cinema. Vi Pietá,
filme de Kim Ki-duk que saiu vitorioso do último Festival de Veneza.
Não conheço muita coisa do diretor. Antes da semana passada, só
tinha visto dois de seus 18 longas: Primavera, Verão, Outono,
Inverno e... Primavera e Casa Vazia, ambos bem diferentes de seu novo
trabalho. O resultado? Bom, depois de mais de 40 minutos de dúvida,
comecei finalmente a gostar do que estava vendo. Não foi fácil e
esta conclusão só se tornou definitiva depois que eu deixei a sala
de cinema, mas Pietá é bom. Muito bom. E, agora, depois dessa
introduçãozinha autoexplicativa, vamos ao porquê.
Pietá
começa como uma porrada no estômago. Os minutos iniciais são
difíceis de digerir, tamanha a quantidade de violência contida em
apenas algumas cenas. Muito embora o derramamento de sangue fique fora da tela, o que vemos é suficiente para que nossa
imaginação preencha as lacunas. Somado às tripas dos animas
cozinhados para o almoço espalhadas pelo banheiro do personagem
principal e ao jogo de dardos complementado com o desenho de uma
mulher, o horror das primeiras sequências formam a imagem do
protagonista Kang-do: um monstro. Empregado por uma companhia de
agiotagem, Kang-do atua como cobrador em uma região urbana e
miserável da Coreia do Sul. Seu método consiste em aleijar os
clientes incapazes de arcar com as altas taxas de juros cobradas pela
empresa. Assim, Kang-do pode recolher o dinheiro do seguro e garantir
o sucesso financeiro de seus empregadores.
Um dia,
voltando para casa, Kang-do começa a ser seguido por uma mulher que
diz ser a mãe que o abandonou quando ele era apenas um bebê.
Insistente e estoicamente, a mulher força sua entrada na vida de seu
suposto filho com a desculpa de recuperar o tempo perdido e pagar
pelo crime de ter abandonado Kang-do e, assim, contribuído para
transformá-lo no monstro dos primeiros minutos de filme. O ódio e a
resistência de Kang-do – que chega ao ponto de tentar estuprar sua
mãe em potencial – aos poucos se transforma em resignação até
culminar em um amor que o leva à uma infância tardia, transitando
na fronteira com o edipiano e desfuncional. E, enquanto dava uma
pesquisada no Google para fazer este post, achei comentários de
gente falando que o filme deveria ter ficado por aí. Que o foco de
Kim Ki-duk deveria ter sido a relação de Kang-do com a mãe que
volta à sua vida. Que o filme perde força quando os fios da trama
começam a se desenrolar. Mas o filme não fica por aí. Ki-duk não
deixa sua narrativa estagnar na “humanização” de Kang-do
através do amor materno. Ki-duk não deixa seu filme morrer em uma
discussão vazia e sentimentalista digna desses recadinhos de “mais
amor por favor” que deram de pipocar pelos muros de uns tempos pra
cá. E, se deixasse, eu certamente não teria começado o post
dizendo que o filme é bom.
Nessa entrevista para o Hollywood Reporter, as intenções de Kim Ki-duk
com seu Pietá ficam bem mais claras: “Pietá
aborda as dissonâncias dos relacionamentos humanos em um sistema
capitalista extremo, mostrando como a família é destruída e como o
dinheiro cria desconfiança entre as pessoas. Acho que é uma
experiência universal, não apenas na Coreia do Sul, mas na Europa e
nos EUA."
E pode incluir o resto do mundo, também. |
Através
da dinâmica de poder entre Kang-do e suas vítimas – e,
posteriormente, entre Kang-do e seus empregadores –, Kim Ki-duk
constrói a imagem do desmantelo das relações humanas através da
crescente importância do dinheiro e de um sistema de valores que
coisifica seus participantes. No centro do retrato visceral pintado
por Kim Ki-duk estão as mulheres que se veem vítimas desta
sociedade. Ao mesmo tempo subjugadas por uma cultural extremamente
patriarcal, as mães e esposas dos clientes de Kang-do são as que
mais sofrem com o interminável esquema de dívidas e cobranças pelo
qual seus filhos e maridos foram aprisionados. Muito embora não
tenham braços e pernas decepados, são elas que, incapazes como
crianças de terem uma voz ativa dentro da sociedade, servem de
binóculo para que a plateia veja de perto a dor e a agonia das
vítimas desse novo mundo. Humilhadas por seus próprios maridos,
abandonadas, desesperadas e deixadas para morrer, elas veem tudo o
que tem ser arrancado de suas vidas, desde os seus sentimentos até
as chances de um prato de comida no dia seguinte. É através do
horror vivido por essas mulheres que identificamos os significados de
Pietá. E é com o horror vivido por essas mulheres que Kang-do deve
buscar sua redenção. Para isto, o personagem precisa desenvolver os
sentimentos atrofiados por seu abandono e sua íntima relação com
o dinheiro e o poder. Ao invés de um filme sobre o amor e seu poder
de transformação, Kim Ki-duk conta uma história de sofrimento
crescente que culmina em uma compreensão da culpa seguida por uma
busca por reparação que o título repleto de significados
religiosos já antecipava. E dá-lhe mais uma porrada no estômago.
Afinal, não há espaço para carinho em um mundo feito de socos.
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