terça-feira, 19 de março de 2013

Pensando um pouco sobre Pietá: amor, agonia e capitalismo

Semana passada não teve post. Em meio a questões para colocar a vida em ordem, acabei não escrevendo nenhum conto e não terminando as séries que eu queria terminar para comentar por aqui. Os dias se passaram e meu ritmo produtivo continuou na mesma estagnação. Porém, como nem só de obrigações e tédio vive a blogueira, consegui achar uma brecha no tempo para ir ao cinema. Vi Pietá, filme de Kim Ki-duk que saiu vitorioso do último Festival de Veneza. Não conheço muita coisa do diretor. Antes da semana passada, só tinha visto dois de seus 18 longas: Primavera, Verão, Outono, Inverno e... Primavera e Casa Vazia, ambos bem diferentes de seu novo trabalho. O resultado? Bom, depois de mais de 40 minutos de dúvida, comecei finalmente a gostar do que estava vendo. Não foi fácil e esta conclusão só se tornou definitiva depois que eu deixei a sala de cinema, mas Pietá é bom. Muito bom. E, agora, depois dessa introduçãozinha autoexplicativa, vamos ao porquê.

 
Pietá começa como uma porrada no estômago. Os minutos iniciais são difíceis de digerir, tamanha a quantidade de violência contida em apenas algumas cenas. Muito embora o derramamento de sangue fique fora da tela, o que vemos é suficiente para que nossa imaginação preencha as lacunas. Somado às tripas dos animas cozinhados para o almoço espalhadas pelo banheiro do personagem principal e ao jogo de dardos complementado com o desenho de uma mulher, o horror das primeiras sequências formam a imagem do protagonista Kang-do: um monstro. Empregado por uma companhia de agiotagem, Kang-do atua como cobrador em uma região urbana e miserável da Coreia do Sul. Seu método consiste em aleijar os clientes incapazes de arcar com as altas taxas de juros cobradas pela empresa. Assim, Kang-do pode recolher o dinheiro do seguro e garantir o sucesso financeiro de seus empregadores.


Um dia, voltando para casa, Kang-do começa a ser seguido por uma mulher que diz ser a mãe que o abandonou quando ele era apenas um bebê. Insistente e estoicamente, a mulher força sua entrada na vida de seu suposto filho com a desculpa de recuperar o tempo perdido e pagar pelo crime de ter abandonado Kang-do e, assim, contribuído para transformá-lo no monstro dos primeiros minutos de filme. O ódio e a resistência de Kang-do – que chega ao ponto de tentar estuprar sua mãe em potencial – aos poucos se transforma em resignação até culminar em um amor que o leva à uma infância tardia, transitando na fronteira com o edipiano e desfuncional. E, enquanto dava uma pesquisada no Google para fazer este post, achei comentários de gente falando que o filme deveria ter ficado por aí. Que o foco de Kim Ki-duk deveria ter sido a relação de Kang-do com a mãe que volta à sua vida. Que o filme perde força quando os fios da trama começam a se desenrolar. Mas o filme não fica por aí. Ki-duk não deixa sua narrativa estagnar na “humanização” de Kang-do através do amor materno. Ki-duk não deixa seu filme morrer em uma discussão vazia e sentimentalista digna desses recadinhos de “mais amor por favor” que deram de pipocar pelos muros de uns tempos pra cá. E, se deixasse, eu certamente não teria começado o post dizendo que o filme é bom.
Nessa entrevista para o Hollywood Reporter, as intenções de Kim Ki-duk com seu Pietá ficam bem mais claras: “Pietá aborda as dissonâncias dos relacionamentos humanos em um sistema capitalista extremo, mostrando como a família é destruída e como o dinheiro cria desconfiança entre as pessoas. Acho que é uma experiência universal, não apenas na Coreia do Sul, mas na Europa e nos EUA."

E pode incluir o resto do mundo, também.
Através da dinâmica de poder entre Kang-do e suas vítimas – e, posteriormente, entre Kang-do e seus empregadores –, Kim Ki-duk constrói a imagem do desmantelo das relações humanas através da crescente importância do dinheiro e de um sistema de valores que coisifica seus participantes. No centro do retrato visceral pintado por Kim Ki-duk estão as mulheres que se veem vítimas desta sociedade. Ao mesmo tempo subjugadas por uma cultural extremamente patriarcal, as mães e esposas dos clientes de Kang-do são as que mais sofrem com o interminável esquema de dívidas e cobranças pelo qual seus filhos e maridos foram aprisionados. Muito embora não tenham braços e pernas decepados, são elas que, incapazes como crianças de terem uma voz ativa dentro da sociedade, servem de binóculo para que a plateia veja de perto a dor e a agonia das vítimas desse novo mundo. Humilhadas por seus próprios maridos, abandonadas, desesperadas e deixadas para morrer, elas veem tudo o que tem ser arrancado de suas vidas, desde os seus sentimentos até as chances de um prato de comida no dia seguinte. É através do horror vivido por essas mulheres que identificamos os significados de Pietá. E é com o horror vivido por essas mulheres que Kang-do deve buscar sua redenção. Para isto, o personagem precisa desenvolver os sentimentos atrofiados por seu abandono e sua íntima relação com o dinheiro e o poder. Ao invés de um filme sobre o amor e seu poder de transformação, Kim Ki-duk conta uma história de sofrimento crescente que culmina em uma compreensão da culpa seguida por uma busca por reparação que o título repleto de significados religiosos já antecipava. E dá-lhe mais uma porrada no estômago. Afinal, não há espaço para carinho em um mundo feito de socos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário