terça-feira, 30 de abril de 2013

Jogos Vorazes, ou: A história de um filme e sua estranha campanha publicitária


De olho nas férias de verão dos Estados Unidos, o trailer do segundo filme da série Jogos Vorazes começou a circular pela internet e pelos cinemas americanos. Em Chamas só estreia no final do ano, mas, com as crianças e adolescentes em casa, agora é a hora de botar o pessoal do marketing para trabalhar. Igualmente oportunista, Elisa resolveu aproveitar a deixa e fazer alguns posts sobre a saga. Pretendo escrever sobre os três livros em outra semana, com spoilers e comentários que não cabem aqui. Hoje, quero falar um pouco sobre o filme, que eu gostei bastante e assisti outra vez esses dias, tanto por causa do blog quanto para refrescar a memória para novembro. E, sim, o post vai ser grande. Dito isto, vamos em frente “and may the odds be ever on your favor”.

A primeira vez em que ouvi falar de Jogos Vorazes foi, se não me engano, em 2011, através de uma colega do trabalho. Ela comprou o livro por acaso e estava me contando sobre como ele era legal. No meio da história, um pensamento começou a me incomodar: "Mas, gente, isso não é Battle Royale?". Tinha acabado de ver o filme baseado no livro de Koushun Takami, e não achei nenhuma grande coisa. Mas a ideia é interessante. Em Battle Royale, uma turma de escola é escolhida a esmo para lutar até a morte em uma ilha. No final, apenas um sobrevive. Passado em um futuro distópico, o filme faz uma crítica à sociedade japonesa e ao medo da juventude. A matança a que são submetidos os adolescentes de Battle Royale serve de processo de transição para a vida adulta: amedrontados, traumatizados e incapazes de confiar em outras pessoas, os jovens de Battle Royale estão prontos para integrar a sociedade. Pelo menos, foi esta a minha interpretação. 

Já em Jogos Vorazes, a capital da nação pós-apocalíptica de Panem exige que seus 12 miseráveis distritos sacrifiquem dois de seus jovens anualmente como punição por uma revolta que levou à completa obliteração de um décimo terceiro distrito. Os 24 "tributos" são levados para uma arena, onde lutarão por suas vidas em uma batalha à qual apenas um pode sobreviver. A competição é transmitida ao vivo para os quatro cantos de Panem e os adolescentes escolhidos são tratados como celebridades, com desfiles, entrevistas e perfis para a televisão. Como em qualquer reality show, o vencedor leva para casa um prêmio: a oportunidade de ter um lar decente e de poder alimentar sua família sem se preocupar com o dia de amanhã.
Os 24 tributos da 74ª edição dos Jogos Vorazes.
 As semelhanças entre a essência de Jogos Vorazes e Battle Royale são, realmente, inegáveis. Muito embora Suzane Collins tenha dito que não se inspirou no livro de Takami, é difícil de acreditar que a autora não tenha, pelo menos, entreouvido e guardado na memória algum comentário sobre a obra japonesa. Porém, a forma como a trama se desenvolve e os temas que ela pretende abordar garantem ao livro de Collins um passe livre para longe do processo judicial. Enquanto Battle Royale aborda o medo do porvir e a passagem para a idade adulta, Jogos Vorazes faz uma crítica ao capitalismo selvagem e à sociedade dominada pela mídia.
Katniss Everdeen (Jennifer Lawrence)
 Para quem não sabe, a personagem principal do romance é Katniss Everdeen. Moradora do Distrito 12, que cuida da mineração de carvão, Katniss se oferece como tributo para salvar a pele da irmã mais nova. O outro escolhido é o aprendiz de padeiro Peeta Mellark, que serve de polo para o triângulo amoroso exigido pela editora para que a trilogia pudesse fazer frente ao fenômeno Crepúsculo. Se Peeta é o Edward da distopia de Suzane Collins, o lobisomem da vez é Gale Hawthorne, melhor amigo de Katniss, com quem a personagem se aventura em caçadas ilegais na floresta que cerca o distrito.
Gale (Liam Hemsworth) e Peeta (Josh Hutcherson)
A adaptação para o cinema correu da melhor maneira possível, em parte porque Jogos Vorazes é uma história feita para ser contada em imagem, dado o importante papel que as representações midiáticas ocupam na trama. O outro motivo é o cuidado na transposição para a tela grande para não deixar o filme longo demais, confuso demais ou verborrágico demais. Embora alguns detalhes essenciais - como o motivo pelo qual o nome de Gale entrou mais de 40 vezes no sorteio - tenham ficado perdidos na sala de montagem (ou na lixeira do roteirista, sei lá), o diretor Gary Ross optou por deixar de fora uma série de cenas desnecessárias, ou por substituí-las por algo mais simples e igualmente funcional. O filme também ganha pontos por ampliar o universo de Panem: enquanto o livro é todo narrado do ponto de vista de Katniss, a adaptação para os cinemas permite que conheçamos um pouco mais os personagens da Capital e os interesses por trás do sangrento reality show. Os dois maiores erros do filme em si são a forma como a comida, que tem um papel fundamental no futuro repleto de pessoas famintas em que a trama se situa, é relegada a segundo plano e a extrema limpeza dos personagens, que estão sempre de cabelinhos cuidadosamente penteados, seja na miséria do Distrito 12 ou na arena dos Jogos. A maquiagem hollywoodiana chega ao ponto de tirar da história a perna amputada de Peeta, enquanto tenta devolver o ar realista à trama com o uso exagerado de câmeras trêmulas.
Katniss e Rue, depois de dias na arena.
Já do lado de fora da tela, é possível encontrar duas faltas muito mais graves na pré-produção e no período de divulgação do filme. A primeira é o whitewashing pelo qual passou Katniss Everdeen: descrita no livro como tendo a pele morena, a personagem teve seu teste de elenco aberto apenas para atrizes caucasianas e acabou sendo interpretada por Jennifer Lawrence. O segundo problema se deve a um setor babaca do fandom de Jogos Vorazes que criticou a escalação da pequena Amandla Stenberg como Rue, a menina do Distrito 11 com quem Katniss forma uma aliança e que é descrita por Collins como tendo a pele e os olhos escuros. A escolha deu origem a uma série de tweets ofensivos (reunidos no tumblr Hunger Games Tweets) que iam desde gente reclamando que Amandla não correspondia à sua imagem da personagem até racistões de marca maior dizendo que a morte de Rue já não era mais tão triste por ela ser negra. O drama, aliás, está se repetindo com a escolha de Jeffrey Wright para o papel do gênio tecnológico Beetee, um antigo vencedor do Distrito 3. Porque, aparentemente, negros não podem ser inteligentes...

Apesar dos maiores problemas de Jogos Vorazes estarem do lado de fora das telas, é também o que foi feito no mundo real que garante ao filme seu maior trunfo sobre sua matéria-prima. E não foi proposital. Ao menos eu não acredito que tenha sido. Se foi, eu sinceramente não consigo dizer se os responsáveis por tudo aquilo são burros feito uma porta ou os maiores gênios do crime que a humanidade já conheceu. Bom, o negócio é o seguinte: pare cinco segundos para prestar atenção no cartaz de Jogos Vorazes e em alguns dos pôsteres promocionais que saíram para Em Chamas.

Alguma coisa estranha? Que tal as frases que anunciam a Turnê da Vitória e avisam que "o mundo estará assistindo"? E esta propaganda de uma marca de esmaltes que desenvolveu uma linha inspirada na franquia, batizada de Capitol Colours?
 
Francamente, nem precisava de mais nada, mas, só pra animar, jogue na mistura o fato de Jogos Vorazes ser quase todo filmado como se fosse um programa de televisão, com direito aos apresentadores Ceasar Flickerman e Claudius Templesmith quebrando a quarta parede para explicar algumas coisas para os espectadores e um videozinho sobre a história dos Jogos Vorazes que nós podemos assistir juntinho com a população de Panem. E eis que a crítica de Suzane Collins a uma sociedade em que uma minoria vive na riqueza enquanto a maioria morre de fome e é explorada por uma mídia manipuladora e quase onipotente torna-se mais óbvia do que nunca. É, nós somos a Capital. Nós, as classes média e alta do mundo inteiro, que concentramos 80% de todas as riquezas enquanto os 92% que compõe o outro lado da moeda agonizam com o pouco que lhes resta. Nós, que assistimos ao Big Brother, um programa que já sofreu investigações por suspeita de estupro e tortura, mas que também assistimos ao programa do Datena e suas variantes, que acompanhamos como a um show o sequestro do ônibus 174, em 2000, e o cativeiro da jovem Eloá, morta pelo ex-namorado em 2008. Nós, que exigimos a redução da maioridade penal para que os moradores das favelas e periferias sejam obrigados a oferecer seus filhos, privados dos confortos que só o dinheiro compra, como tributos para o julgamento popular e o espetáculo em que o noticiário transformará a próxima chacina ou rebelião de presidiários. Nós, que assistimos uma crítica ao nosso mundo e depois compramos esmaltes para representar distritos aos quais não pertencemos, no melhor estilo glamourização da miséria. É a máquina de contradições do capitalismo funcionando a todo vapor.
Escracha!
Vou chegar ao ponto de dizer que Suzane Collins escreveu um manifesto anti-capitalista infanto-juvenil? Não. O posicionamento de Jogos Vorazes é bem mais complicado e vai ficar para o próximo post. Porém, depois do retrocesso, tanto em termos políticos quanto narrativos, que foi o sucesso de vendas Crepúsculo, espero realmente que a trilogia de Collins ganhe cada vez mais os corações e mentes de seu público-alvo. Mesmo com sua divulgação esquizofrênica. Ou por causa dela. Ainda não sei dizer.

terça-feira, 16 de abril de 2013

Obituário



Era uma daquelas manhãs em que a cidade mais parecia os arredores de algum estábulo. A lama gerada pela chuva, os restos do esgoto que sempre terminava por transbordar e o lixo acumulado nas poças deixavam as ruas com um cheiro insuportável. Entre suspiros e exclamações, Dona Marlúcia desviava com dificuldade dos buracos repletos de água e micro-organismos espalhados pela calçada. Seus tempos eram outros, em que as crianças eram mais educadas, o mundo não era tão mau e o ar era mais limpo, assim como as travessas e alamedas que ainda não tinham se transformado em largas avenidas de concreto. Nas suas mãos enrugadas, duas sacolas suportavam o peso – a cada ano mais leve – dos jornais do dia, comprados bem cedinho para não faltar nenhum.
Já fazia mais de década que Dona Marlúcia conservava o hábito de checar os obituários e memorizar o nome de todos que estavam para ser velados e enterrados. Não se preocupava com as notícias de terremotos e assassinatos, com o adeus de presidentes, artistas e líderes religiosos - mortes grandiosas nas quais todos prestariam atenção. Queria os desconhecidos, os que não receberiam sequer uma nota não fosse pelo pagamento da família e de amigos – verdadeiros indigentes na sociedade da mídia. À noite, antes de dormir, rezava um terço dedicado às pessoas que deixavam, pela última vez, uma marca de sua existência no mundo: Otávio, Carolina, Noêmia, Jurandir... Para que suas alminhas entrassem sem problemas no céu, dizia.
Dona Marlúcia não ia mais à igreja. Na parede do corredor, conservava ainda o calendário do Sagrado Coração e uma pintura de Nossa Senhora com o Menino Jesus em seus braços. Porém, Deus e seus inúmeros profetas já não eram mais parte do seu dia a dia, apenas uma forma de lidar com os momentos difíceis da vida. Esta religiosidade ocasional era o motivo pelo qual seu marido – “que Deus o tenha” - dizia que seu hábito de rezar o terço para os mortos estava mais para uma superstição do que para um sinal de fé. Dona Marlúcia não lhe dava ouvidos. Mesmo agora, já viúva, sacudia a mão no ar para desmerecer suas palavras.
Na noite daquele dia malcheiroso, Dona Marlúcia repetiu o gesto duas vezes no caminho para a cama. Pegou o terço de cima da mesa de cabeceira e desabou no chão no exato minuto em que o primeiro relâmpago iluminou o quarto. O peito doía, a cabeça girava, o ar não entrava. Do que chamam isto hoje em dia?, pensou. Infarto? Falência múltipla dos órgãos? No tempo da bondade, das crianças educadas e das ruas com cheiro de flores, teria sido apenas um troço.
Apenas quando o trovão ribombou pelo céu é que Dona Marlúcia percebeu que provavelmente não viveria para descobrir o nome do mal que lhe acometera. E foi então que um pensamento aterrador invadiu sua cabeça: em todos os anos que passara rezando pelos desconhecidos, nunca dedicara uma ave-maria que fosse à sua própria alma. E se ninguém fizesse isto por ela? Seus filhos não eram religiosos e seu grupo de amigas já fora reduzido a menos da metade. Não conseguiria rezar por si própria. Não agora. Haveria outros que dedicavam suas preces aos nomes nos obituários? Se sim, será que sua família pagaria por uma notinha em pelo menos um daqueles jornais?
Uma luz esbranquiçada adentrou o quarto, fazendo com que Dona Marlúcia esboçasse um choro desesperado. O estrondo que se seguiu a fez parar: era apenas a chuva que anunciava sua chegada. O medo, porém, permanecia e Dona Marlúcia se pegou desejando que nada daquilo que ouvira nas aulas de catequese fosse verdade. Foi então que pensou em seu marido, que talvez ele tivesse razão quando dizia que ela já não agia por fé. Era apenas uma superstição. Uma forma de afastar sua própria mortalidade. Ou, talvez, de aproximá-la. Afinal, aqueles não eram mais os seus tempos. Dona Marlúcia pensou na vida que se esvaía de sua carne e nos sinais divinos que já tardavam em aparecer: as luzes, os anjos, a paz de Cristo... A cada esforço que fazia para respirar, seu medo lhe parecia mais e mais distante. Quando soltou seu último suspiro, Dona Marlúcia viu apenas o escuro e compreendeu que, de agora em diante, seria apenas uma ausência. Seus lábios moveram-se pela última vez: um agradecimento sussurrado para alguém que ela já sabia que não estava ouvindo.