quinta-feira, 23 de maio de 2013

O irmão mais novo



A floresta de pernas cercava o lustroso berço de titânio. Raízes de cores brilhantes, repletas de amortecedores, que culminavam em caules azulados. Troncos beges e amarronzados cobertos por uma folhagem de diversas camadas. Plantas dos mais diversos tipos, dispostas em torno da clareira que abrigava o bebê. Em meio à selva, um aventureiro abria caminho para observar aquele ser completamente novo para o mundo.
Miguel olhou para o irmão por entre as barras do berço. Não era o mesmo cercado de madeira em que ele dormira, e seu primo antes dele. Era novo. Caro. Resistente. Belo. Tal qual seu ocupante. Talvez até tivessem sido feitos pela mesma companhia.
Miguel se lembrava do dia em que seu pai o levou para ver o irmãozinho no laboratório. Eles tiraram fotos e Miguel pensou que seus pais haviam feito um péssimo negócio. Já vira fotos do tempo em que era bebê e elas não mostravam um etezinho afogado em uma bolha de líquidos, preso a uma máquina por uma corda que lembrava os estranhos vermes do livro de ciências do seu primo. Mas seu pai explicou que o novo bebê era diferente. Havia sido criado a partir do melhor caldo genético e era alimentado apenas por nutrientes escolhidos a dedo. Teria um nascimento perfeitamente controlado, no dia, na hora, no minuto e no segundo certos. E sua mãe não sentiria qualquer tipo de dor.
Todos os parentes, amigos e vizinhos despencaram-se imediatamente após o parto para ver aquele pequeno milagre da ciência. Era o fim da dor, da doença, das imperfeições. O sonho da raça humana na forma de bebês rechonchudos, simétricos, cabeludos e risonhos, como os das fotografias tratadas das capas de revista.
Miguel afastou-se do irmão, que dormia, alheio ao que sua saúde e beleza simbolizavam para os meros mortais ao seu redor. Ou talvez ele soubesse, e justamente por isso dormisse com tanta leveza. Em frente ao espelho, Miguel tirou os óculos e examinou sua figura desfocada. Seu irmão não teria problemas de visão como ele. Também não teria asma como ele. Também não teria aqueles ossos proeminentes e anêmicos. E nem o nariz que ele herdara da avó, grande demais para o resto do rosto.
Seu irmão era forte. Belo. Perfeito. Medonho.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Cor de Tempo

Ele abriu a velha caixa de fotografias que ficava guardada embaixo da cama. Como suas pernas, o papelão estava manchado pelo tempo e, como seus cabelos, deixava rastros sobre o lençol. As fotos eram como uma estrada capaz de percorrer o tempo ao invés do espaço. Retiradas uma a uma ou em pequenas pilhas, elas iam perdendo a cor, a definição, e até mesmo pedaços. Mais ou menos no meio do caminho, ele encontrou o que queria.
Os retratos estavam ainda inteiros, perfeitamente visíveis, embora tivessem adquirido a tonalidade típica dos momentos que ficam para trás. Bem em cima, um rapazote de vinte e poucos anos posava diante de um imponente edifício, coberto pela coloração amarela do passado. Um reflexo dos dentes, das unhas e das marcas de injeção da figura enrugada sobre a cama, que parecia tão ousada e composta na antiga fotografia, com seu uniforme do tiro de guerra.
Os dedos constantemente trêmulos acariciaram o rosto do rapaz, que era e não era mais – era passado e presente ao mesmo tempo. Com passinhos curtos, ele levou o retrato até uma outra figura enrugada, sentada em uma cadeira de balanço, coberta por um xale florido.
- Aqui: uma foto do seu noivo.
- É velha.
- Não é, não. É nova. É do seu noivo.
- Está amarela.
- É efeito. Desses que a garotada gosta.
A mão magra e coberta por ondinhas saiu de baixo do xale e tomou com cuidado a fotografia das mãos daquele homem desconhecido. Um sorriso se acendeu no rosto daquela mulher, que ele conhecia tão bem. E os dois fitaram com afeto as feições sorridentes de seus amados, cada um preso em sua própria época.