sexta-feira, 28 de junho de 2013

Ferida


No primeiro dia, ela cutucou a ferida com as unhas sujas da poeira do chão do quarto. Era pequena, apenas um pontinho vermelho de sangue e carne bem na curvinha do joelho. Ela não sabia de onde ela tinha vindo. Talvez fosse resultado de um tombo de leve na aula de educação física, ou a marca deixada por algum caquinho de vidro esquecido pela casa. Era tão pequenina... Mas, ainda assim, doía. Como um corte de papel que esconde seu incômodo sob uma aparência quase imperceptível, a ferida ardia e latejava a cada toque. Era melhor deixar para lá, então. Não encostar. No dia seguinte, ela provavelmente já estaria coberta por uma casquinha, que seria cuidadosamente arrancada para dar lugar a uma rosada cicatriz.
No segundo dia, ela foi lembrada da marca em sua perna enquanto estava no banho. A água fresca parecia atear fogo naquele pedaço da sua pele. Com o rosto retorcido pela surpresa e um gemido abafado, ela viu que a antes diminuta ferida agora se transformara em um machucado de verdade, daqueles deixados por um tombo no chão de cimento puro, sem qualquer tipo de cobertura. Recostada na parede, ela levantou e dobrou o joelho para dar uma olhada mais cuidadosa na ferida. O esticar da pele tornou ainda mais intensa a dor causada pela estranha mácula que parecia estar cicatrizando ao contrário.
No terceiro dia, ela mostrou a ferida para a mãe, em busca de respostas para as perguntas que não queriam calar. Por que ela não fechava? Por que ficava aumentando sem parar? De onde ela poderia ter vindo? Pois devia ser um machucadinho de nada que ganhou outras proporções de tanto ela futucar. Era só pegar um vidrinho de mertiolate no armário do banheiro, passar um pouco no joelho e deixar a ferida quietinha que ela com certeza ia passar. Foi esta a resposta que ela ouviu. Despreocupada. Insuficiente. Decepcionante. Mas não havia mais nada a fazer. Com a pazinha áspera, ela espalhou o remédio sobre a chaga e esperou que ela diminuísse. Leu, dormiu, viu televisão. Tomou cuidado para que nada encostasse no machucado, nem mesmo seu olhar. Tentou esquecer que ele estava lá. À noite, procurou as melhoras prometidas por sua mãe e pela companhia farmacêutica. A ferida continuava no mesmo lugar e não tinha diminuído nem um tiquinho. Na verdade, a impressão que dava era de que ela só havia feito crescer, assim como nos dias anteriores. Mas talvez fosse só isso, mesmo: impressão...
No quarto dia, ela foi acordada por gritos nervosos que ordenavam que ela levantasse da cama. Uma caneca de achocolatado deixada sobre o chão da sala – não tinha nada que ser deixada ali! – estava cheia de formigas. Com os olhos arregalados de susto, ela pulou para o chão e correu para ouvir as broncas e levar sua louça suja para a cozinha. Não deu atenção para a ferida, que continuava lá, e agora se espalhava por toda a parte inferior do seu joelho. Não deu atenção para o fato de que mancava, tamanho o incômodo causado pelo machucado. Não deu atenção para a dor, que corria por suas terminações nervosas, mas parecia incapaz de chegar ao cérebro. A única coisa que importava era a caneca suja de achocolatado largada no chão da sala, bem em frente ao sofá. Francamente, já era hora dela tomar tenência nessa vida e começar a crescer.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Tem que ser sobre 20 centavos



            Um dia, eu saí de casa e a passagem estava custando R$2,95. Eu não soube do reajuste de antemão. Não vi nenhum aviso, nenhuma matéria de jornal, nada. Fui pega totalmente de surpresa pelo acréscimo de 20 centavos ao valor já abusivo cobrado pelas companhias de transporte público. Por sorte, estava munida de um Riocard cheinho e consegui pagar a passagem. Do contrário, talvez estivesse com o dinheiro contado e muito provavelmente não chegaria a tempo no evento que precisava cobrir.
            Alguns dias depois, protestos contra o aumento dos ônibus começaram a eclodir por diversas cidades brasileiras. Em todas elas, era fácil ver a revolta da população que enfrenta diariamente um serviço de transporte precário e superfaturado enquanto as obras da Copa de 2014 vão ficando cada vez mais caras. A situação se agrava conforme olhamos para as periferias dessas grandes cidades: em uma matéria da Folha, um trabalhador da construção civil contava que precisava pular refeições para arcar com o custo da passagem, não coberto pelos patrões. Contra todas essas injustiças que alimentam umas às outras, um movimento mais ou menos espontâneo se formou, a princípio em capitais como São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, e posteriormente se expandindo para o resto do país e até para cidades menores: Niterói, Santos, Londrina, Juiz de Fora... Um a um, municípios de Norte a Sul do país tiveram suas ruas tomadas por manifestantes, que agora exigiam muito mais do que o passe livre ou a redução das passagens.
            Foi por causa de São Paulo. Outras pessoas podem apontar outros motivos, claro, mas, na minha opinião, o motivo pelo qual os protestos contra o reajuste ganharam tantos adeptos e tiveram suas pautas ampliadas foi a violência com a qual a polícia lidou com o protesto do dia 13 de junho na capital paulista, com tiros de balas de borracha, truculência e todo tipo de abuso. Giuliana Vallone, a repórter da Folha que se tornou símbolo ao levar um tiro no olho, vai recuperar a visão – o mesmo não pode ser dito do fotógrafo Sérgio Silva, da agência Futura Press, que não ganhou tanto espaço nos telejornais e nas redes sociais. Em um bar perto da Avenida Paulista, um casal foi espancado por PMs por ter participado do ato que acabara de acontecer. Uma jovem corajosa tornou público seu relato de agressão sexual: um policial a obrigou a tirar a camisa enquanto a chamava de vadia e passava o cassetete pelos seus seios. Tudo isso despertou uma sensação generalizada de raiva e dor e fez com que muita gente que fecha os olhos para os abusos cometidos diariamente nas favelas brasileiras finalmente visse o horror que representa a nossa Polícia Militar.
            E, por um tempo, foi muito bom. Foi lindo ver toda aquela gente na rua finalmente se envolvendo em um movimento que, em qualquer outra situação, seria apenas de algumas centenas ou de poucos milhares. Até que ontem estive entre as mais ou menos 100 mil pessoas que marcharam da Candelária até a Cinelândia, no Rio de Janeiro, e o que eu vi passou longe de ser o cenário político mais animador do mundo. Adianto que não estive com o pessoal que foi para a Alerj, mas não vejo baderna nenhuma em pichar as paredes da assembleia e encurralar policiais – é apenas um reflexo das barbaridades perpetradas pelos governos Paes e Cabral contra os índios da Aldeia Maracanã, os alunos da Escola Friendenreich, os jovens que cercaram o Maracanã no último domingo e tantos outros. Porém, não vejo a validade em incendiar carros de Deus sabe quem e em impedir a passagem do caminhão de bombeiros, presente apenas para conter o fogo e tratar dos feridos. Saí antes de toda essa confusão, porém, decepcionada com o esvaziamento político da manifestação, assim como meus companheiros de passeata. Em um estranho clima ufanista, pessoas se enrolavam na bandeira do Brasil e cantavam “eu sou brasileiro com muito orgulho, com muito amor”. Lá na frente, um estandarte dos integralistas do MV-Brasil se fazia visível. Novatos no mundo das mobilizações políticas e das noções básicas de fotografia gritavam “sem vandalismo” para quem subia em postes com máquinas fotográficas nas mãos para fazer uma daquelas fotos que todo mundo adora da multidão vista de cima. Outros gritavam “Sem partido!” e “Vai tomar no cu!” para manifestantes que carregavam bandeiras do PSOL, do PCB... Soube que um militante do PSTU foi espancado e teve sua bandeira roubada e queimada por gente que marchava ao seu lado alguns segundos antes. Mas o que mais me marcou foi a cena de completo descaso pela integridade humana que presenciei na porta do Theatro Municipal: uma menina apontava e gritava em tom de denúncia, anunciando a presença de dois jornalistas das Organizações Globo que andavam sem crachá. Vendo a hora em que alguém ia jogar um pedaço de pedra portuguesa na cabeça de um daqueles dois, dando início a um linchamento em praça pública, me meti na discussão para que eles pudessem ir embora. “Eu também sou jornalista!”, gritava a menina, com o dedo na minha cara. “Eu me demiti de três empregos porque manipulavam as minhas matérias!”. Que legal, cara! Queria muito viver nesse seu mundo mágico onde não existem contas para pagar e todos podemos escolher nossos empregos livremente de acordo com nosso alinhamento ideológico.
            É claro que ainda tinha muita gente boa e interessada naquela passeata, mas muitas das pessoas que vi eram meros reflexos dessa menina: incapazes de reconhecer seus inimigos, em busca apenas de confusão ou de um Judas grande o suficiente para receber todo o ódio da população e fácil de bater. Qual é a lógica de proclamar o fim da divisão entre esquerda e direita e rechaçar pequenos partidos enquanto deixa versões de fascismo correrem soltas por aí? Não pertenço a partido algum e fico indignada quando grupos ligados a estas instituições monopolizam o discurso de manifestações. Como muitos, tenho uma certa aversão ao envolvimento partidário. Porém, é assim que muita gente se mobiliza. E essas pessoas tem o direito de ver suas organizações representadas, assim como integrantes de outros grupos, como diretórios estudantis e sindicatos. Mas o quê? Você acha que o PSOL, o PCB e o PSTU estão lá para pegar carona no seu ato? Pois fique sabendo que, quer a gente goste, quer não, é esse pessoal que faz com que manifestações como essa saiam do tuitaço e da petição do Avaaz para ganhar as ruas. E são eles, também, que continuam lá depois que acaba a modinha do protesto e o grosso dos ativistas vai para casa. Partido não é feito só de deputado ladrão: é também formado por gente que se envolve, que participa e que busca diálogo com a população. E, em meio a toda essa confusão, lá se vai a pauta do protesto. “Não é só pelos 20 centavos”, dizem cartazes e fotos no Facebook. Mas então é pelo quê? “Pelo investimento do dinheiro da Copa na saúde e na educação”. Agora que os estádios já estão prontos? “Pelo impeachment da Dilma”. Oi? De onde veio isso? “Contra a corrupção”. Esse é o meu preferido! Tem gente que adora protestar contra a corrupção, como se fosse uma demanda política válida e não um abstrato conceito moral. É como botar uma roupa branca e abraçar a Lagoa Rodrigo de Freitas para pedir paz. O que é paz, para você? O que você está pedindo? Educação, saúde e redistribuição de renda ou mais pancadaria na favela para evitar roubo de iPhone no asfalto? Já vi pelo Facebook gente querendo incluir até a redução da maioridade penal na pauta dos protestos. Essa demanda não é minha e não vou ficar calada enquanto me empurram goela abaixo exigências que eu acho erradas. Senão eu também posso incluir o que eu quiser na pauta do movimento!
            Com brigas internas e completa falta de direção, as manifestações tão lindas que percorrem o Brasil vão se diluindo e se transformando em uma coisa disforme, que não pede nada e não apresenta ameaça nenhuma a ninguém. E aí as pessoas se apaixonam pelo mea culpa do Arnaldo Jabor e a súbita mudança de discurso da mídia enquanto meninos e meninas de 19 anos continuam sendo presos arbitrariamente. E pelo quê? É para que tudo isso não seja em vão que o movimento precisa recuperar seu foco. Os protestos precisam voltar seus olhos para a questão do transporte público e o modelo exclusor de cidade para o qual ele contribui ao invés de ficar rodando a cabeça para todos os lados. As manifestações tem que saber para onde estão indo, ter nas pontas das línguas o que estão pedindo. Elas tem que ser sobre os 20 centavos. E toda a violência que essas moedinhas carregam.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Jogos Vorazes, ou: Violência, drogas e classificação indicativa

Este post é parte de uma série de dois textos sobre a série Jogos Vorazes. Para ler o primeiro, clique aqui.

            Enquanto me dirigia ao caixa da livraria com uma cópia do primeiro volume de Jogos Vorazes nas mãos, uma menina de mais ou menos uns 15 anos apontou para o meu livro e, com um sorriso de orelha a orelha, disse que era muito bom. Foi na época da estreia do filme e ela usava uma camisa temática e um broche com a figura de um tordo, ave símbolo da revolução narrada por Suzanne Collins. Pouco tempo depois, tentei conversar com alguns amigos sobre a trama – os mesmos amigos com quem assisti ao último filme da saga Harry Potter a título de rito de passagem – e descobri que eles nunca tinham sequer ouvido falar do hit infanto-juvenil que estava sendo vendido como o novo Crepúsculo. E eu comecei a me questionar se não estaria velha demais para hits infanto-juvenis. Eu, que rio litros com Bob Esponja e A Nova Onda do Imperador. E então eu percebi que ninguém se questiona se está velho demais para Bob Esponja e A Nova Onda do Imperador. Praticamente todos se sentem no direito de conservar gostos infantis, ao passo que fazem pouco daqueles característicos da adolescência. Pode ser uma questão de rejeição, típica de uma mudança de fase para a idade adulta. Mas também pode ser porque a infância conserva uma aura mágica de esperteza e inocência aos olhos da nossa sociedade, enquanto a adolescência é vista com um certo ar de ridículo, como uma etapa da vida da qual nos deveríamos envergonhar, quando nos importávamos apenas com namoros, panelinhas e o próximo filme da série American Pie (referência que, daqui a alguns anos, ninguém mais vai entender...).
Eu tinha 11 anos em 1999. É, tempo...
            Entre as representações midiáticas que contribuem para esta visão simplória da adolescência, estão exemplos como a novelinha teen Malhação e a própria saga Crepúsculo, com a qual Jogos Vorazes foi amplamente comparada. A narrativa pouco variada e maniqueísta, a falta de complexidade dos temas e o foco quase que exclusivo em relacionamentos românticos só tacam mais lenha na fogueira de quem vê os jovens entre a infância e a idade adulta apenas como criaturinhas irritantes e inócuas. Mas Suzanne Collins não faz parte deste clubinho. Como tratado no post anterior, a autora não tem medo de colocar diante de seus leitores questões como miséria, violência, exploração da pobreza e privilégios de classe, o que levou grupos conservadores a pressionar escolas públicas pela remoção dos livros de suas bibliotecas, saindo-se muitas vezes vitoriosos. E muitos dos assuntos abordados por Collins tiveram apenas a ganhar com a adaptação para a tela grande, mas alguns detalhes importantíssimos acabaram ficando de fora – detalhes que vão muito além da perna amputada de Peeta e que poderiam custar aos filmes seguintes sua classificação PG-13 (equivalente ao nosso “12 anos”, embora o filme tenha sido vetado para menores de 14, no Brasil).

             É o caso do desenvolvimento de personagens como a própria Katniss, Haymitch Abernathy e os dois antigos vencedores do Distrito 6 convocados para o Massacre Quartenário. Nos três casos, o estresse pós-traumático causado pelos Jogos resulta em um consumo abusivo de algum tipo de droga como válvula de escape. Enquanto os dois tributos sem nome do distrito responsável pela produção de fármacos se agarram a suas doses de morfina para permanecer alheios à realidade, Katniss encontra refúgio na bebida, assim como Haymitch. O mentor dos jovens escolhidos do Distrito 12 teve o alcoolismo apagado de sua versão para celuloide, mas será difícil mantê-lo aparentemente sóbrio nas telas a partir do momento em que seu problema se torna fundamental para a trama. A complicação aumenta devido ao realismo com que Collins trata os vícios de seus personagens: ao invés de ocultar uma campanha antidrogas nas entrelinhas de seus três volumes, com ex-viciados caminhando alegremente sob o sol, a autora mostra sua Katniss pós-alcoolismo como ainda incapaz de superar a dor a que foi submetida e recuperar o contato com as pessoas e o mundo ao seu redor.
Haymitch Abernathy (Woody Harrelson)
            Collins também não poupa seus personagens dos efeitos das torturas promovidas pela Capital contra seus opositores. Enquanto, em Harry Potter, os pais de Neville Longbottom sucumbiram à loucura devido a um feitiço de efeitos vagamente descritos, Peeta Mellark e Johanna Mason, capturados pelo governo após a revolta do Massacre Quartenário, apresentam sinais bastante descritivos dos suplícios pelos quais passaram. Enquanto o jovem companheiro de Katniss na arena dos 74os Jogos Vorazes é submetido a uma lavagem cerebral digna de Laranja Mecânica, a antipática vencedora do Distrito 5 desenvolve um pavor descontrolado de água, que a impede mesmo de tomar um simples banho. É uma analogia ao bom (?) e velho (ô!) waterboarding, ou afogamento, tão comum nos relatos dos ex-prisioneiros de Guantánamo e de outras bases americanas usadas durante a chamada “Guerra ao Terror”. O governo do presidente Snow é responsável, também, pela criação de Avox, escravos com as línguas cortadas que cuidam de inúmeros serviços no luxuoso mundo da Capital. Punidos por atos de revolta, os Avox se encaixam perfeitamente na atmosfera de Império Romano que Collins aplica a seu futuro distópico, com Ceasars e Senecas e jogos em arenas. Aos crimes da Capital, podemos acrescentar ainda a violência sexual cometida contra os moradores dos distritos tanto na forma de repressão policial, como é o caso do Pacificador Cray, que troca favores sexuais por comida com jovens do Distrito 12, quanto na de uma política institucionalizada de agenciamento de jovens tributos para a classe dominante de Panem, como descobrimos através da história de Finnick Odair, vencedor do Distrito 4. Ao contrário da ameaça de estupro implicitada por J.K. Rowling nas palavras do lobisomem Fenrir Greyback para Hermione Granger e da metáfora para abstinência sexual dos vampiros de Stephenie Meyer, Collins não deixa margens para interpretações. Em parte porque confia no seu público, mais velho que o de Harry Potter, mas principalmente porque não há espaço para representações mágicas em seu mundo.
Johanna Mason (Jenna Malone)
            Porém, o que menos se assenta sob a maquiagem hollywoodiana, na minha opinião, não é a a crudeza de Collins para com o público adolescente, mas o estranho final de sua saga. Nesse mundão velho sem porteira que é a internet, já vi gente reclamando que o final não é satisfatório por não apresentar uma resolução e gente dizendo que A Esperança, último livro da série, tem uma resolução padrão e desleal com sua protagonista, com filhinhos e casamento. Concordo em parte com o primeiro argumento, embora ache que é justamente a falta de resolução que torna o final de Jogos Vorazes tão fantástico. Com o antigo gamemaker Plutarch Heavensbee como sua eminência parda, a nova democracia de Panem é frágil e tão centrada na mídia quanto a ditadura que a precedeu. A explicação de que as coisas estão bem por enquanto, mas que podem degringolar a qualquer momento, e o novo reality show previsto para começar em breve transformam a trilogia de Collins quase em uma versão para crianças de O Leopardo, filme de Lucchino Visconti sobre a unificação italiana, baseado em um romance que nunca li de Giuseppe Tomasi di Lampedusa: “Às vezes, as coisas precisam mudar para continuar as mesmas.” Quanto ao último ponto contrário à série, é ingenuidade afirmar que Jogos Vorazes tem um final feliz padrão. Katniss tem sua vida destruída tanto pelo cruel regime da Capital quanto pela revolução que ajudou a consolidar. Sua família e seus amigos estão para sempre perdidos, de um jeito ou de outro, e nada mais natural que ela encontre conforto apenas na pequena família formada por Haymitch e Peeta nos escombros do Distrito 12. E, no que diz respeito a filhos, Katniss nunca disse que não queria tê-los, apenas que se recusava a gerar mais vidas para serem ceifadas pela Capital. Logo, não é trair sua caracterização fazer com que ela se torne mãe. Até mesmo porque, “dezenove anos mais tarde”, Katniss não está em uma plataforma de trem, sorrindo e curtindo os tempos de paz. E é isso que soa mais estranho para um blockbuster de verão.

“My children, who don't know they play on a graveyard.
Peeta says it will be okay. (…) We can make them understand in a way that will make them braver. But one day I'll have to explain about my nightmares. Why they came. Why they won't ever really go away. (…)
That's when I make a list in my head of every act of goodness I've seen someone do. It's like a game. Repetitive. Even a little tedious after more than twenty years.
But there are much worse games to play.”

terça-feira, 4 de junho de 2013

Manga com leite



- E o que a gente vai fazer com o corpo?
Um raio irrompeu na televisão, reduzindo a pó o pato do desenho animado, enquanto Tamara esperava a resposta de sua irmã.
- A gente enterra no quintal, bem no túmulo do Pluto. Daí, ninguém vai saber.
Luísa era a mais velha e mais esperta, portanto, foi a responsável por ligar o liquidificador e manusear a combinação mortífera de manga com leite. Com a mamadeira cheia, as duas caminharam nas pontas dos pés até o berço de Isadora, a caçula, que recentemente passara do quarto dos pais para o quarto das meninas. Não precisavam de mais uma irmã e, principalmente, não precisavam de mais ninguém para ocupar seu espaço, que já não era muito grande, para começo de conversa.
A bebê aceitou com voracidade a bebida oferecida pelas irmãs. Agora, era só uma questão de tempo. Quando o veneno finalmente fizesse efeito, elas diriam para os pais que a pequena havia fugido ou sido levada por alguém - alguém que não fosse um bandido, claro. Diriam também que estava tudo bem, que eles quatro já bastavam para uma família feliz. E ninguém pensaria em revirar o túmulo do velho vira-lata para descobrir a verdade. Penduradas no berço, as duas sorriram. Era um plano à prova de falhas.
Foi apenas à noite, quando os programas infantis já haviam dado lugar à novela, que Tamara e Luísa perceberam que a sabedoria popular nem sempre tem razão. Quando os créditos finais começaram a rolar, as duas foram para a cama, decepcionadas e ainda alheias à culpa e amargura que permeariam suas vidas a partir daquela sexta-feira de julho.