quinta-feira, 25 de julho de 2013

Do que aconteceu naquela tarde de sexta-feira

Nós colocamos nossas mãos sobre o copo de vidro que nos serviria de ponte. Ao seu redor, as letras do alfabeto estavam dispostas em um semicírculo, complementado pelos números de 0 a 9 e dois pedacinhos de papel que diziam “Sim” e “Não”.
Também podia ser feito com um compasso, disse a menina do oitavo ano que nos explicou as regras do jogo na sala de estudos da biblioteca. Mas o copo é mais seguro. O compasso é muito leve e descontrolado. Acabaria girando para qualquer lado e as respostas poderiam não fazer sentido.
Nós conhecíamos com moedas, explicamos. Duas caras querem dizer sim, duas coroas, não e uma cara e uma coroa, talvez.
- O copo dá mais detalhes – ela respondeu.
Nossas casas eram próximas umas das outras. Clarissa morava no meu prédio e Giovanna, em uma ruazinha sem saída um pouco depois. Íamos para a escola juntas. E foi na mesa de pingue-pongue do playground do edifício que nos reunimos para nosso primeiro contato sério com entidades espirituais.
O ritual começava com uma simples pergunta, repetida duas, três, quatro vezes: “Tem alguém aí?”. Nossos olhos se arregalaram quando o copo finalmente deslizou pelo tampo da mesa em direção ao pedacinho de papel que respondia afirmativamente.
- É claro – disse Giovanna. - O que mais ele poderia dizer? - Nós a silenciamos.
Aos poucos, coletamos informações sobre nosso interlocutor. Era homem. Morrera com 23 anos, de tuberculose. Era certamente bonito, naquele estilo do século XIX que aparecia nos seriados de televisão. Ele não nos disse isso, óbvio, mas era como eu achava que deveria ser. Não conseguia ir embora para o outro mundo porque seu ódio o prendia ao plano terreno: pretendia arrastar consigo o maior número de almas que conseguisse, como forma de expressar sua revolta por ter perecido tão cedo. Quanto mais jovens, melhor.
- Eu não estou gostando disso... - Giovanna voltou a interromper. E, mais uma vez, nós a silenciamos.
Giovanna era a mais medrosa de todas nós. Gritava sozinha quando víamos filmes de terror, mesmo no cinema, onde todos riam e viravam para encará-la tamanho o seu desespero. Após uma sessão de DVD ou de histórias de terror, muitas vezes dormia na minha casa ou na de Clarissa para não ter que andar os dois quarteirões que separava seu prédio do nosso, mesmo que ainda fosse cedo. Logo, foi a que mais sofreu quando o copo começou a formar frases ameaçadoras, que diziam que jamais voltaríamos a ver nossas famílias, que não poderíamos ir embora. Com o rosto encharcado pelas lágrimas, Giovanna se jogou contra a parede, arrancando a mão de cima do copo, trêmula. Clarissa correu para acalmá-la. Um pouco depois, eu também tentei ajudar.
Na noite daquela sexta-feira, dormi com um sorriso nos lábios – o resto da gargalhada com que abri a porta de casa. Como elas eram impressionáveis.
Só fui acordar na hora do almoço, no dia seguinte. Os lençóis estavam tão quentinhos, o colchão, tão macio. Poderia nunca mais ter saído dali. Seria capaz de descansar para sempre com os olhos entreabertos, enrolando-me como um gato nas cobertas. E eu estava com sono. Tinha dormido tanto, mas era como se nunca tivesse encostado a cabeça no travesseiro.
Mas minha preguiça de fim de semana não teve tempo para se dissipar naturalmente. Com um sacolejo fraco, porém nervoso, meu pai me arrancou do meu calmo despertar. Fazia perguntas rápidas e aparentemente desconexas sobre Clarissa. Se eu sabia onde ela estava; o que tínhamos feito ontem; se ela costumava andar com alguém estranho, talvez alguém mais velho; se tinha falado alguma coisa sobre fugir de casa. Mais tarde, enquanto repetia para a polícia as mesmas respostas que dera a meu pai, finalmente caiu a ficha de que Clarissa havia desaparecido sem deixar rastros. E talvez nunca mais voltasse.
Um pensamento correu pela minha espinha, deixando para trás um rastro dolorido e gelado. Sentada no sofá da sala, não conseguia fazer nada além de olhar fixamente para a televisão, incapaz de absorver as imagens que dela emanavam. Não me lembro de ter levantado uma vez sequer, nem ao menos para is ao banheiro. Acho que não comi, também. Eu apenas encarava o que estava à minha frente: a tela, os móveis, o nada, o vazio borrado dos meus olhos, o fantasma da nossa brincadeira. Não tinha mais tato: era incapaz de sentir as almofadas, o chão, as mãos que seguidamente tocavam meu ombro em busca de algum sinal de vida.
Meu transe chegou ao fim por volta das oito da noite, quando o barulho estridente do telefone tornou impossível para mim ignorar o mundo ao meu redor. Talvez eu já soubesse quem estava do outro lado da linha. Talvez fosse isso o que eu estava esperando. Com passadas automáticas como as de um robô, eu caminhei até a cômoda e tirei o fone do gancho. Despreocupada, com a voz abafada pelos personagens da novela, a mãe de Giovanna me pedia para avisar sua filha que já era hora de ir para casa. Ela também não tinha voltado. Acostumados que estavam com as noites que ela passava em minha casa, sua mãe e seus irmãos não deram por sua ausência.
Quando eu desliguei o telefone, meus pais me envolveram em um sufocante abraço, acariciando-me, beijando-me e agradecendo a Deus por eu estar segura em casa. Eles tremiam e fungavam, contendo o choro que não tinham o direito de compartilhar. Eu me desvencilhei de seus braços e, sem uma palavra, enfurnei-me no quarto, batendo a porta atrás de mim. No escuro, sentada em um cantinho empoeirado, ainda catatônica, eu apertei as pernas contra o peito e deixei a primeira lágrima escorrer pelo meu rosto. Então a segunda, a terceira, a quarta...
Eu tinha empurrado o copo.

terça-feira, 16 de julho de 2013

A Legião Urbana nos cinemas e o que a autora acha de tudo isso


Quando Renato Russo morreu, eu tinha 8 anos de idade e cursava o que antes era a segunda série do Ensino Fundamental. Eu não sabia quem ele era. Não era muito ligada em música e o pouco que gostava se resumia a um pequeno apanhado do que as crianças da época ouviam: É o Tchan!, Spice Girls e sei lá mais o quê. Tinha uma fita da Turma da Mônica, também, e uma certa obsessão pelos LPs da trilha sonora de Pantanal. Lembro que – “Sacrilégio!”, gritarão alguns – não dava a mínima para os Mamonas Assassinas. E então Renato Russo morreu, deixando órfã uma legião de fãs da qual eu não fazia parte. Aliás, nem eu, nem (provavelmente) minha amiguinha que, alguns dias depois, apareceu com algumas músicas da Legião Urbana no walkman, acredito que copiadas dos discos dos seus primos adolescentes. E foi assim que eu descobri “Índios”, “Eduardo e Mônica”, “Ainda é Cedo” e várias outras canções de três acordes conhecidas por todo moleque de 13 anos que faz aulas de violão.
Do completo desconhecimento, passei a ser fã de Legião Urbana. Tive quase todos os discos (nunca consegui comprar “O Descobrimento do Brasil”) e tenho, ainda, uma camisa com a letra de “Há Tempos” nas costas, devidamente elevada à categoria de pijama. E assim fui ao longo do fim de minha infância e por toda a minha adolescência. Mais tarde, durante a transição para aquela época da vida que eu me recuso a chamar de idade adulta, desenvolvi um certo asco de Legião. Em parte por uma verdadeira mudança de gostos, mas também devido a um bom e velho processo de negação. E hoje? Bom, hoje, penso que consigo olhar para trás de uma forma mais honesta e emitir uma opinião mais ou menos válida sobre a Legião Urbana. E esta opinião é a seguinte: reconheço a importância da banda para a música brasileira, principalmente para o rock, e ainda gosto de muita coisa que eles fizeram, principalmente dos primeiros álbuns. Acho, por exemplo, que os versos simples de “Eduardo e Mônica” são infinitamente superiores à desnecessária pretensão de “Sereníssima”. Também acho que Renato Russo não era tão rei da cocada preta quanto costumam dizer. Tudo bem, ele escreveu coisas muito legais, mas era só um cara meio intelectual, meio de esquerda da classe média brasiliense, com uma compreensão de mundo que muitas vezes não correspondia ao quão profundo ele queria ser. Mas é claro que ainda fica também aquele restinho de nostalgia. E foi mais para honrar o passado do que qualquer coisa que eu me enfiei no cinema duas vezes quase seguidas para ver Somos Tão Jovens e Faroeste Caboclo.
A cinebiografia do jovem Renato Russo era, de longe, o filme para o qual eu mais tinha expectativas. Pensava em Somos Tão Jovens como uma espécie de Cazuza: uma versão encaretada, mas ainda digna de um ícone da música pop brasileira. E, olha, vou dizer que fiquei surpresa: o tanto que eles conseguiram endireitar Cazuza não chega nem perto do conservadorismo à la Senhoras de Santana que virou a vida de Renato. Não só faltam alguns baseados nos dias do jovem músico em Brasília como o diretor Antonio Carlos da Fontoura conseguiu excluir da história de um homem abertamente bissexual qualquer selinho que fosse entre pessoas do mesmo sexo. Quando Renato conhece sua primeira paixonite masculina, os dois dão uma volta, comem um podrão e terminam a noite com um... abraço. Se colocarmos a cena em contraste com a insinuação bem clara de sexo entre o cantor e sua amiga Ana Cláudia – uma fusão de várias personagens reais –, chegamos a uma diferenciação tão grande entre relacionamentos hetero e homoafetivos que Fontoura poderia ganhar o troféu Moral e Bons Costumes das mãos do líder da Tradição, Família e Propriedade.
Renato era chato. E conservador?
Mas o filme tem alguns pontos positivos. É divertido ver a turma de Renato “dançando” na Rockonha e a semelhança entre os atores e os personagens que interpretam chega a ser absurda em determinados momentos. Não apenas Thiago Mendonça é a cara e a voz do líder da Legião como Ibsen Perucci poderia substituir Dinho Ouro-Preto em shows do Capital Inicial sem que ninguém percebesse. Conrado Godoy também é o próprio Marcelo Bonfá, assim como Nicolau Villa-Lobos tem todo o jeito de Dado, embora por motivos mais óbvios que seus colegas de elenco. Entretanto, cinema não é concurso de sósias e o cuidadoso casting acaba sendo desperdiçado em uma direção de atores fraca e um roteiro sem personalidade. A trama se desenrola quase como uma série de episódios, em que não temos tempo nem informações o suficiente para conhecer qualquer personagem que não Renato, que soa muito mais chato e superficial do que a forma como certamente gostaria de ser retratado. E, no afã de fazer trocadilhos e piadinhas com títulos e trechos de canções da Legião Urbana, os diálogos soam vazios e falsos. É constrangedor o momento em que Renato diz para os amigos que está com um “tédio com um T bem grande”, abrindo as comportas para uma imensa cascata de referências desnecessárias.
Com Faroeste Caboclo, a coisa foi bem diferente. Tinha certeza de que ia assistir a uma masturbação de fã, feita por um desses caras que anda o tempo todo com o violão no ombro ou por algum mané que grita “é a porra do Brasil” no meio de “Que País é Este?”. Quando as luzes se apagaram, virei para o lado e perguntei baixinho para o meu namorado: “Você também não tem expectativa nenhuma para este filme, né?”. A resposta? “Nem um pouco”. Porém, a cada 24 quadros que passavam pela tela, nossa predisposição ao ódio ia se esvaindo. Se quase arranquei o estofado da cadeira quando os primeiros acordes da canção de Renato Russo apareceram para embalar uma cena do pequeno João de Santo Cristo com sua mãe, foi um alívio perceber que a música como um todo foi deixada apenas para os créditos finais e não foi usada como recurso fácil e sentimentalista em nenhum momento do filme. Também foi fantástico ver o esforço colocado no desenvolvimento de João, Jeremias, Maria Lúcia e todos os outros personagens acrescentados pelo diretor René Sampaio e pelos roteiristas Victor Atherino, Marcos Bernstein e José Carvalho à história de Renato Russo. Se a música tornava possível uma certa unidimensionalidade através de frases como "desde criança só pensava em ser bandido" e "desvirginava mocinhas inocentes e fingia que era crente mas não sabia rezar", ela foi cuidadosamente evitada. João de Santo Cristo é muito mais complexo e amável do que o criminoso por natureza salvo pelo amor da Legião Urbana e Jeremias continua sendo asqueroso e detestável, mas sem o toque Coração Gelado de Renato, que faz de seu vilão tão cruel que ele praticamente se casa com Maria Lúcia só de sacanagem. E toda a tensão construída através dos três personagens principais tem um final mais do que adequado. O aguardado duelo da Ceilândia não tem pipoqueiros, nem câmeras (e nem ofensas sexistas, graças), mas tem uma aridez e um colorido que provavelmente não levariam Sergio Leone às lágrimas, mas o deixariam bem contentinho.
Maria Lúcia e João de Santo Cristo (Fabrício Boliveira)
Mas são as mudanças feitas na história o verdadeiro trunfo do filme, e não suas referências e seu apuro visual. O roteiro deixa de lado as partes didáticas de Renato a respeito do contexto social da época e deixa o Brasil dos anos 80 fluir de forma mais natural para dentro da trama. Ao invés do "senhor de alta classe com dinheiro na mão", temos uma rápida montagem inicial para retratar a agitação política do fim da ditadura. Ao invés de querer "falar com o presidente para ajudar toda essa gente", João sabe muito bem que é prisioneiro de sua condição, segurando edições do Correio Braziliense para sair na foto e provar que ainda está vivo. O filme também faz uma série de mudanças no universo dos personagens. Sem muita história na canção original a não ser ter ganhado o coração de João de Santo Cristo, Maria Lúcia é transformada na filha de um senador, apaixonada por um homem que jamais será aceito pelo meio racista e elitista em que vive. A jovem interpretada por Ísis Valverde também não é a "filha da puta sem vergonha" que engravida de Jeremias por supostamente não ter caráter, mas uma mulher que aceita as chantagens de um poderoso traficante para salvar a vida de seu amado. Aliás, a transformação de Jeremias em chefão do crime organizado na área nobre de Brasília também é muito bem vinda. Afinal, se tem uma coisa que não faz sentido é um sujeito aparecer do nada e derrubar um traficante tão bem estabelecido quanto João de Santo Cristo sem enfrentar qualquer problema. Com algumas mudanças, os personagens de Renato Russo funcionam de um jeito que eu nunca achei que fosse possível. Não são perfeitos, claro: Maria Lúcia poderia não ser tão Madonna sofredora e Jeremias poderia ser um pouquinho mais humano, às vezes. Mas ainda assim são bem construídos o suficiente para tirar o medo do começo da sessão e garantir um puta filme. E um bom faroeste, até.
Jeremias (Felipe Abib)