terça-feira, 20 de agosto de 2013

Meninas, quadrinhos e boy bands


Na última semana, duas coisas aconteceram na mídia gringa. Bom, na verdade, várias e várias coisas aconteceram na mídia gringa, assim como várias e várias coisas aconteceram na mídia nacional, mas eu vou me focar em duas, que chamaram a minha atenção pela quantidade de vezes que apareceram em meus grupos de discussão e no meu feed do Tumblr. A primeira foi uma matéria da publicaçãobritânica GQ sobre a banda One Direction. A revista – uma espécie de Trip, com matérias sobre moda, sexo e cultura voltadas para homens – ganhou o (merecido) ódio de fãs da boy band, que se sentiram ofendidas pela forma quase animalesca usada pelo repórter para descrever o público de um determinado show, composto em sua imensa maioria por meninas adolescentes, e pela entrevista com os membros do grupo, na qual o repórter insiste que um dos garotos, cujo desconforto é visível, revele o número de mulheres com quem dormiu ao longo da vida. A segunda coisa que me chamou atenção foi o debate realizadopela televisão pública americana, a PBS, com os quadrinistas Todd McFarlane,Len Wein e Gerry Conway. O painel tinha como objetivo promover uma série de documentários televisivos produzida pelo canal, que aborda a produção e o impacto das histórias em quadrinhos e a forma como elas refletem a sociedade. Questionados sobre a ausência de personagens femininas relevantes em suas páginas, os três convidados fizeram coro a um discurso que todo mundo já ouviu, desde que seja mais ou menos nerd: quadrinhos não são para meninas. Segundo McFarlane, Wein e Conway, demandas por diversidade de gênero, raça e sexualidade não são de interesse dos autores, a constante representação de personagens femininas apenas como vítimas de violência – principalmente sexual – é apenas um reflexo do mundo real e histórias em quadrinhos não servem de ponte para diálogo com o público feminino, uma vez que meninas não leem quadrinhos.
À primeira vista, os dois assuntos parecem quase que completamente desconexos. Tirando o fato de que falam sobre crianças e adolescentes do sexo feminino, não há nenhum ponto em comum entre a matéria da GQ e o painel da PBS. Mas isto não é verdade. Não foram apenas as meninas a serem colocadas na berlinda, mas seus gostos. E se o primeiro acontecimento já representa um problema de origem sexista por colocar mulheres como objetos sexuais e pela eterna distinção arbitrária entre gêneros, o que realmente houve é causa e efeito de uma outra questão: o processo de desvalorização do que é atribuído ao feminino e a imediata associação de garotas e mulheres a esses elementos culturais “de segunda categoria”.
Da fodaça Kate or Die!
A premissa é simples e funciona, com algumas alterações e de maneira mais institucionalizada, para a cultura produzida para e/ou pela população negra e pobre da periferia. E se você for uma mulher ou um homem trans*, eu não sei nem começar a pensar como ela se aplica aos seus gostos, já que o patriarcado tem uma extrema dificuldade de descobrir em que caixinha te colocar e frequentemente te relega à lixeira. Branca, de classe média e cissexual, vou me ater à análise daquilo que eu conheço bem. Segue a lógica: tudo aquilo que é criado de acordo com as expectativas sociais do gênero feminino é inócuo, fútil, burro, incômodo. Piora se você for adolescente, uma vez que jovens entre 13 e 19 anos já são por si só percebidos como inócuos, burros, fúteis e incômodos. Em outras palavras: nada do que é feito para você gostar – e de que você muitas vezes gosta – presta, o que te torna, evidentemente, uma imbecil. Entretanto, você não pode escapar desse universo de “porcarias” colocadas para você. Se você tentar ouvir outro tipo de música, ler outro tipo de literatura, ver outro tipo de filme, você também é uma imbecil, pois está apenas fingindo para parecer inteligente e/ou conseguir atenção. Ou você simplesmente não existe. Ou as duas coisas. Acredite, é possível!
Então, vamos parar para examinar com mais cuidado a primeira parte desse ciclo vicioso, escolhida arbitrariamente por mim, uma vez que não dá para determinar onde começa um círculo. A indústria cultural produz uma imensa quantidade de material voltado para o público feminino, desde a primeira infância até a idade adulta. Fazem parte desse pacotão novelas, bonecas Barbie e Bratz e seus respectivos filmes, cantores românticos, as já mencionadas boy bands, comédias românticas, desenhos animados no estilo Moranguinho ou Clube das Winx, Princesas Disney, livros eróticos de banca de jornal e, mais recentemente, um nicho da literatura de fantasia que tem como foco o relacionamento amoroso da personagem principal com algum ser sobrenatural. Bem inseridas na ideologia patriarcal e heteronormativa que vê a existência da mulher como decorativa e voltada para o homem, essas produções carregam em seu discurso valores como passividade, delicadeza, beleza, “passion for fashion” e o amor romântico. São esses mesmos valores passados para meninas e mulheres que crescem e envelhecem com esses materiais que servirão, mais tarde, para a sua condenação. Afinal, ao mesmo tempo em que se preza uma mulher bela, delicada e arrumadinha, ela é também vista como fútil e superficial por supostamente não ter preocupações além de sua aparência e da possibilidade de arranjar um namorado.
É com base nesses estereótipos que o repórter da GQ afirma que as fãs do One Direction não se preocupam com a História ou com os Rolling Stones – cujas fãs provavelmente receberiam o mesmo tratamento, há algum tempo atrás. O jornalista chega ao ponto de comparar as adolescentes a banshees (espíritos malignos da mitologia celta) devido aos pulos e gritos que expressam sua paixão e desejo pelos membros da banda. Porque, aí, entramos em uma outra questão, mencionada de leve um pouco mais acima: a sexualidade feminina é doentia, patética, ridícula. Se antes ela inspirava medo nos religiosos medievais, hoje ele é motivo de piada no mundo ocidental. E dá-lhe montagens de internet para zoar o fenômeno literário 50 Tons de Cinza sem que uma palavra seja dita sobre sua (falta de) qualidade narrativa. A graça é rir das caras das idiotas que vão para a cama com Christian Grey na cabeça.
Mas e quando nada disso é atraente para você? Bom, aí você procura outros interesses, certo? E então você dá de cara com o problema: na divisão por gênero da cultura de massa, aquilo que está do outro lado do espectro não foi feito para você. E uma boa parte dos responsáveis por esses produtos culturais não veem a menor necessidade em atender sua demanda. Afinal, as vendas estão ótimas e em time que está ganhando, a gente não mexe. Então, ou você aceita quietinha e finge que não tem nenhum sinalzinho de opressão nas inúmeras princesas em outros castelos nem nas heroínas que precisam de superpoderes só para segurar seus maiôs no lugar, ou você reclama. Em qualquer um dos casos, a reação é, em sua maior parte, de escárnio: você está no lugar errado, você não é fã de verdade, você só quer atenção, “go back to the kitchen and make me a sandwich”. Se você é do time das que veem a necessidade de criticar os aspectos opressores da mídia, invariavelmente você vira feia e mal-comida segundo o tribunal dos fanboys. Se você fica quietinha, talvez alguns te digam que você, sim, é especial; você gosta de quadrinhos/videogames/ficção-científica de verdade; você não é uma attention-whore. Daí você se sente acolhida e passa para o lado do opressor. Fica aqui o meu recado para essas meninas: não se iluda. Parece fácil, parece que você encontrou seu lugar no mundo, parece que você é superior, mas não é: basta um deslize para que a ridicularizada seja você.
Parece legal, mas... não. Só... não.
“Elisa, faça-me o favor de explicar aonde você quer chegar com tudo isso?”, pergunta a pessoa que aguentou esse testamento até aqui. “Você acha que meninas deviam largar o mundo nerd de mão? Você acha que não podemos criticar o One Direction?”. Bom, como dá pra perceber pelos longos posts sobre Once Upon a Time, acho a crítica midiática essencial, independente do objeto de análise. Nada é criado no vácuo, tudo carrega uma carga ideológica e qualquer coisinha nesse mundão de Deus merece ser vista com o mesmo grau de desconfiança. Então, é claro que eu apoio críticas ao One Direction. Assim como apoio críticas a 50 Tons de Cinza. O romance de E.L. James pinta um cenário irreal que apela para fantasias de dominação e romantiza relacionamentos abusivos. E eu poderia usar a mesma frase para falar de quase toda a produção de filmes pornô. Na versão livre, Crepúsculo endossa valores conservadores através da história de uma personagem antipática criada para servir de avatar para leitoras e espectadoras. E o mesmo vale para Transformers. Porém, ninguém faz piadinhas sobre dar 50 golpes de cinta em homens que tocam punheta para as Brasileirinhas, nem se vê na obrigação de chamar de imbecil todo garoto de 14 anos que sonha em ter um Optimus Prime para chamar de seu. Produtos culturais devem ser aplaudidos e vaiados sob as mesmas medidas, e aqueles que os consomem nunca devem ser o principal alvo da crítica, pois estes fazem as escolhas dentro do que lhes é oferecido. Para que sejamos verdadeiramente honestos, porém, é preciso sair desse mundo de fantasia em que um Seya de Pégaso vale mais do que uma Sailor Moon porque meninas tem sapinho ou qualquer coisa que o valha. E é preciso que liguemos o foda-se para essas barreiras e deixemos em paz as garotas que querem defender Atena com meteoros de pégaso e os garotos que querem salvar Tóquio com uma tiara lunar.
Fã de Harry Potter e de Douglas Adams falando!

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