Eu sempre achei que poderia perdoá-los.
A porta bateu com força, me deixando para trás, no escuro.
Eu tremia, chorava, gritava, implorava, berrava e, enfim, me calava, em pânico. Ainda assim,
achei que poderia perdoá-los.
Mãos que eu não sabia de onde surgiam puxavam-me,
agarravam-me, apalpavam-me, empurravam-me, arrancavam-me as roupas, a calma e a
segurança no ritmo das gargalhadas sem dono que me ensurdeciam – estridentes,
invasivas, nojentas, enervantes, agressivas. E eu achei que poderia perdoá-los.
Era uma brincadeira, me disseram. Foi engraçado. Se você
não fosse tão fácil de assustar, se não tivesse tantas esquisitices, se fosse
mais que nem a gente, se levasse as coisas na esportiva... Eu concordei e achei
que poderia perdoá-los.
Brincadeira de criança, eles repetiram, anos depois. Todos
éramos idiotas. Éramos imaturos, inconsequentes. Mas você tem que admitir que
foi engraçado. Lembra quando você começou a chorar? Lembra? Você saiu correndo
e nós bloqueamos o seu caminho e te jogamos de um lado para o outro e você
começou a gritar e nós cuspimos na sua cara e você se encolheu no canto e nós
nos esfregamos em você e te obrigamos a beber do nosso mijo e limpamos o chão
com seus cabelos. Lembra? Lembra? Lembra? É claro que era uma piada imbecil,
mas – ai, ai... – os bons e velhos tempos da infância, quando podemos ser bobos
assim sem medo de nada nem ninguém... Eu sorri, assenti e achei que poderia
perdoá-los.
Nos dias e noites de cansaço e ausência, o corpo coberto
da cabeça aos pés, engolindo, por vergonha, um grito de angústia, de desespero;
nas viagens de ônibus em que todos os meus pequenos problemas transfiguravam-se
em aberrações dantescas e inundavam meus olhos, meu rosto, minhas mãos; nos
abraços e carinhos em que eu nunca pude sentir nada além da violência de um
toque estranho; em cada nojo, em cada aversão, em cada ódio, em cada tensão, em
cada medo, em toda e cada vez que eu tranquei a porta com o mais forte dos
cadeados para resguardar o mundo do incômodo da minha presença e me proteger
das vaias e dos tomates e das risadas e dos xingamentos. Em todos esses
momentos, eu achei que poderia perdoá-los.
Mesmo quando tornei a vê-los, já adultos, com filhos,
empregos e responsabilidades, achei que poderia perdoá-los.
Eles me chamaram para um jantar. Queriam relembrar o
passado. Queriam dividir causos, piadinhas, travessuras, pequenos relatos de um
tempo mais inocente. Buscando uma nostalgia da qual eu ainda supunha
compartilhar, eu aceitei o convite. A cada nova historinha sobre mim, eu
sorria, assentia e achava que poderia perdoá-los.
Foi só quando o risinho crescente e intervalado ecoou pela
sala e minhas mãos meladas de sangue deixaram cair sobre o carpete acinzentado
o último dos corpos deformados e repulsivos – criados à minha imagem e
semelhança – que eu finalmente entendi: eu jamais poderia perdoá-los.
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