sexta-feira, 11 de outubro de 2013

O Relógio

Ela quebrou o relógio para fazer o tempo parar.
Com cada golpe da barra de ferro, ela se esforçava para prender no lugar o mundo que se expandia claustrofóbico e a esmagava entre suas paredes espaçosas e distantes. A cada pancada, ela trocava a solidão daquele universo lotado e barulhento pela leveza do vazio. A cada mola, caco, a cada pecinha da engrenagem que voava pelo ar e se espatifava contra a parede, o futuro ia se apagando, dando lugar ao agora, tão real e confortador.
Era um belo relógio, até. Uma relíquia de família que transcendia o sangue e os clãs. Mas ele não lhe servia. Não era capaz de segurar seus ponteiros para salvá-la do juízo que a aguardava, bem como a todos os seus pares. Então, ela o fez em mil pedaços. Esperava, assim, dar um fim ao inevitável abismo em que a forçavam a mergulhar de cabeça, sem qualquer aviso de quando seu suplício terminaria. Com o relógio quebrado, o tempo não poderia passar.
Coitadinha... Mal sabia ela que, com o relógio quebrado, o tempo não teria ninguém para impedi-lo de correr.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

As máscaras, a sua avó e o repórter da GloboNews


Hoje, dia 10 de setembro de 2013, a Alerj aprovou a tal lei que proíbe o uso de máscaras em manifestações no Estado do Rio de Janeiro. É uma lei burra, antidemocrática e inconstitucional, feita de acordo com os interesses de parlamentares interessados em intimidar a população e dificultar a participação em atos públicos: máscaras, afinal, servem tanto como proteção para pessoas que não querem sufocar com spray de pimenta nem ir para a cadeia por motivos arbitrários quanto como uma forma engraçadinha de protestar. Na última grande manifestação realizada no Rio, por exemplo, não era raro encontrar máscaras de papel com a cara do governador Sérgio Cabral.
O ato em questão é o Grito dos Excluídos, que acontece anualmente no feriado de 7 de setembro, em várias cidades brasileiras. Foi a minha primeira vez lá, logo, não posso julgar o Grito de 2013 em comparação com os dos outros anos, mas achei bacana. Tinha bastante gente e espaço para as incontáveis demandas de sindicatos e movimentos sociais. Entretanto, a movimentação estava um pouco difusa e discursos mais bem definidos acabavam ofuscados por palavras de ordem chiclete, mas muitas vezes vazias. A polícia foi exemplar, como sempre, espalhando bombas e gás por todos os lados, inclusive na estação de metrô da Central. Um amiga com quem combinei de me encontrar sentiu o cheiro de pimenta dentro do vagão, pouco depois da PM ter impedido a entrada de manifestantes na tradicional parada das instituições militares, que nosso passado e presente mostram que são d-i-g-n-í-s-s-i-m-a-s de desfilar de cabeça erguida. E aí, depois que eu já tinha ido embora, aconteceu um outro problema, agora por culpa de um grupo de manifestantes: Júlio Molica, um repórter da GloboNews, foi identificado por um “ninja” e expulso do protesto sob xingamentos e pancadas. Tem vídeo pra quem duvida. Alguns queriam apagar do celular as imagens que ele havia feito. A situação só não ficou mais feia porque o rapaz foi tirado do meio da multidão por um segurança da emissora, que o acompanhava à distância, com a ajuda de um sindicalista e três advogados da OAB. Também fiquei sabendo disso tudo hoje, através do ótimo texto da professoraSylvia Moretzsohn no Observatório da Imprensa.
E daí eu fiquei confusa. Porque se antes eu queria escrever algo sobre a então potencial aprovação da lei, depois de ler sobre o repórter da GloboNews minha vontade passou a ser a de passar um sermão nessa gente que se acha super esclarecida, mas não entende o básico do funcionamento do capitalismo. Pra resolver o problema, aqui vão meus pitacos sobre os dois assuntos, que talvez não tenham tanto em comum além do contexto político em que se deram.
Vamos começar pelo menino da GloboNews, que, segundo o desinfeliz da Mídia NINJA, estava lá arriscando a vida pela Globo e por uma materiazinha. Pois bem, eu nunca gostei muito desse grito de “a verdade é dura, a Rede Globo apoiou a ditadura”. Volta e meia virava para o meu namorado e fazia uma graçolice do tipo “mas a Band e o Casoy tão de boa” ou “a verdade é dura, a sua avó apoiou a ditadura”. Mas vai lá, eu entendo: as Organizações Globo são um símbolo, tanto do apoio irrestrito do empresariado e de parte da sociedade civil a um dos períodos mais traumáticos da história do Brasil quanto do monopólio da comunicação no país. E, realmente, devido ao seu poder, ela teve um papel muito mais significativo no apoio aos militares e encheu muito mais o bolso do que velhinhos e velhinhas da classe média que aproveitaram o milagre econômico para comprar um carro e mandar os filhos pros Estados Unidos. Porém, é muito fácil essa rejeição ao padrão Globo de jornalismo virar um ataque aos profissionais da empresa. E não estou falando do William Bonner, que é manda-chuva e ganha uma surra de dinheiro, mas de um repórter quase desconhecido que vai para a rua cobrir passeata pelo Skype. Já tinha visto isso acontecer outras vezes e era só uma questão de tempo para que os gritos de “pela-saco” e “ei, Globo, vai tomar no cu” escalassem para a violência física. Só que, meus queridos, a Globo pode ser escrota o quanto for, mas empregado não é igual a patrão. Se fosse, teríamos todos ido fazer escracho na porta do trocador quando a passagem aumentou, não é mesmo? O nosso sistema econômico funciona a partir da venda da força de trabalho, e todos tem contas para pagar.
Então chegamos em um outro ponto do vídeo da Mídia NINJA, que me foi apontado por uma amiga: a insistência do sujeito responsável pela gravação em chamar Molica de ninja ao invés de repórter. É, como disse essa minha amiga, uma forma de se aproveitar da situação para dar visibilidade para a marca, controlada pelo no mínimo polêmico Fora do Eixo, que, por sua vez, é controlado pelo no mínimo questionável Fábio Capilé. Mas, além disso, é também uma forma de alinhar o trabalhador à identidade ideológica da empresa. Mesmo que o rapaz da Mídia NINJA não saiba, ao chamar o repórter da GloboNews de ninja, ele apaga sua identidade como jornalista, como profissional. O repórter se torna um agente secreto, voluntariamente a serviço de uma série de posições políticas. E, se você se identifica com a ideologia da empresa e do sistema, ninguém precisa se preocupar se você está sendo explorado, não é mesmo? Não é mais do interesse de ninguém que você é mal pago, que se arrisca, que muitas vezes abandona suas próprias opiniões e que praticamente não tem escolha. Claro, você sempre pode morar nas cada vez mais criticadas casas do Fora do Eixo e ser pago em CuboCards, mas isso não parece uma alternativa assim tão agradável. Então, você tenta ganhar seu pão e crescer na profissão enquanto um monte de gente te ataca, achando que você é um avatar do Roberto Marinho.
E agora eu vou forçar a barra para criar um gancho para o próximo tópico: como dá pra ver no vídeo, muitas das pessoas que gritavam com Molica não usavam máscaras. A moral da história? Ninguém precisa de máscara para fazer merda. E nem todo mundo que usa máscara quer fazer merda. Em tempos de redes sociais, a máscara serve para que aqueles que estão na linha de frente consigam se proteger das ações de retaliação do governo e da polícia. Ninguém é anônimo: todos tem carteira de identidade, que pode ser requisitada a qualquer momento. Ao contrário da nossa polícia militar, que cobre a cara e esconde a identificação na hora de matar Amarildos e prender jovens por se organizarem para os protestos e por terem facas de pão em casa. A máscara também serve para proteger as vias respiratórias da d-e-l-i-c-i-o-s-a fragrância de pimenta com que a PM perfuma a cidade, que pode causar desde um simples incômodo até sufocamento. Ela também pode ser substituída por um lencinho, um casaco, uma camisa ou qualquer outro pedaço de pano que todos devem ter sempre à mão na hora de protestar. Mas isso não faz diferença para a lei proposta por dois deputados do PMDB. Lei que, como eu disse lá em cima, é inconstitucional: o legislativo estadual não pode tomar decisões no âmbito penal. Cabe ao governo federal decidir o que é crime e qual é a pena. Como se vê, ninguém precisa de máscara para fazer merda.

sábado, 31 de agosto de 2013

Perdão

Eu sempre achei que poderia perdoá-los.
A porta bateu com força, me deixando para trás, no escuro. Eu tremia, chorava, gritava, implorava, berrava e, enfim, me calava, em pânico. Ainda assim, achei que poderia perdoá-los.
Mãos que eu não sabia de onde surgiam puxavam-me, agarravam-me, apalpavam-me, empurravam-me, arrancavam-me as roupas, a calma e a segurança no ritmo das gargalhadas sem dono que me ensurdeciam – estridentes, invasivas, nojentas, enervantes, agressivas. E eu achei que poderia perdoá-los.
Era uma brincadeira, me disseram. Foi engraçado. Se você não fosse tão fácil de assustar, se não tivesse tantas esquisitices, se fosse mais que nem a gente, se levasse as coisas na esportiva... Eu concordei e achei que poderia perdoá-los.
Brincadeira de criança, eles repetiram, anos depois. Todos éramos idiotas. Éramos imaturos, inconsequentes. Mas você tem que admitir que foi engraçado. Lembra quando você começou a chorar? Lembra? Você saiu correndo e nós bloqueamos o seu caminho e te jogamos de um lado para o outro e você começou a gritar e nós cuspimos na sua cara e você se encolheu no canto e nós nos esfregamos em você e te obrigamos a beber do nosso mijo e limpamos o chão com seus cabelos. Lembra? Lembra? Lembra? É claro que era uma piada imbecil, mas – ai, ai... – os bons e velhos tempos da infância, quando podemos ser bobos assim sem medo de nada nem ninguém... Eu sorri, assenti e achei que poderia perdoá-los.
Nos dias e noites de cansaço e ausência, o corpo coberto da cabeça aos pés, engolindo, por vergonha, um grito de angústia, de desespero; nas viagens de ônibus em que todos os meus pequenos problemas transfiguravam-se em aberrações dantescas e inundavam meus olhos, meu rosto, minhas mãos; nos abraços e carinhos em que eu nunca pude sentir nada além da violência de um toque estranho; em cada nojo, em cada aversão, em cada ódio, em cada tensão, em cada medo, em toda e cada vez que eu tranquei a porta com o mais forte dos cadeados para resguardar o mundo do incômodo da minha presença e me proteger das vaias e dos tomates e das risadas e dos xingamentos. Em todos esses momentos, eu achei que poderia perdoá-los.
Mesmo quando tornei a vê-los, já adultos, com filhos, empregos e responsabilidades, achei que poderia perdoá-los.
Eles me chamaram para um jantar. Queriam relembrar o passado. Queriam dividir causos, piadinhas, travessuras, pequenos relatos de um tempo mais inocente. Buscando uma nostalgia da qual eu ainda supunha compartilhar, eu aceitei o convite. A cada nova historinha sobre mim, eu sorria, assentia e achava que poderia perdoá-los.
Foi só quando o risinho crescente e intervalado ecoou pela sala e minhas mãos meladas de sangue deixaram cair sobre o carpete acinzentado o último dos corpos deformados e repulsivos – criados à minha imagem e semelhança – que eu finalmente entendi: eu jamais poderia perdoá-los.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Meninas, quadrinhos e boy bands


Na última semana, duas coisas aconteceram na mídia gringa. Bom, na verdade, várias e várias coisas aconteceram na mídia gringa, assim como várias e várias coisas aconteceram na mídia nacional, mas eu vou me focar em duas, que chamaram a minha atenção pela quantidade de vezes que apareceram em meus grupos de discussão e no meu feed do Tumblr. A primeira foi uma matéria da publicaçãobritânica GQ sobre a banda One Direction. A revista – uma espécie de Trip, com matérias sobre moda, sexo e cultura voltadas para homens – ganhou o (merecido) ódio de fãs da boy band, que se sentiram ofendidas pela forma quase animalesca usada pelo repórter para descrever o público de um determinado show, composto em sua imensa maioria por meninas adolescentes, e pela entrevista com os membros do grupo, na qual o repórter insiste que um dos garotos, cujo desconforto é visível, revele o número de mulheres com quem dormiu ao longo da vida. A segunda coisa que me chamou atenção foi o debate realizadopela televisão pública americana, a PBS, com os quadrinistas Todd McFarlane,Len Wein e Gerry Conway. O painel tinha como objetivo promover uma série de documentários televisivos produzida pelo canal, que aborda a produção e o impacto das histórias em quadrinhos e a forma como elas refletem a sociedade. Questionados sobre a ausência de personagens femininas relevantes em suas páginas, os três convidados fizeram coro a um discurso que todo mundo já ouviu, desde que seja mais ou menos nerd: quadrinhos não são para meninas. Segundo McFarlane, Wein e Conway, demandas por diversidade de gênero, raça e sexualidade não são de interesse dos autores, a constante representação de personagens femininas apenas como vítimas de violência – principalmente sexual – é apenas um reflexo do mundo real e histórias em quadrinhos não servem de ponte para diálogo com o público feminino, uma vez que meninas não leem quadrinhos.
À primeira vista, os dois assuntos parecem quase que completamente desconexos. Tirando o fato de que falam sobre crianças e adolescentes do sexo feminino, não há nenhum ponto em comum entre a matéria da GQ e o painel da PBS. Mas isto não é verdade. Não foram apenas as meninas a serem colocadas na berlinda, mas seus gostos. E se o primeiro acontecimento já representa um problema de origem sexista por colocar mulheres como objetos sexuais e pela eterna distinção arbitrária entre gêneros, o que realmente houve é causa e efeito de uma outra questão: o processo de desvalorização do que é atribuído ao feminino e a imediata associação de garotas e mulheres a esses elementos culturais “de segunda categoria”.
Da fodaça Kate or Die!

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Do que aconteceu naquela tarde de sexta-feira

Nós colocamos nossas mãos sobre o copo de vidro que nos serviria de ponte. Ao seu redor, as letras do alfabeto estavam dispostas em um semicírculo, complementado pelos números de 0 a 9 e dois pedacinhos de papel que diziam “Sim” e “Não”.
Também podia ser feito com um compasso, disse a menina do oitavo ano que nos explicou as regras do jogo na sala de estudos da biblioteca. Mas o copo é mais seguro. O compasso é muito leve e descontrolado. Acabaria girando para qualquer lado e as respostas poderiam não fazer sentido.
Nós conhecíamos com moedas, explicamos. Duas caras querem dizer sim, duas coroas, não e uma cara e uma coroa, talvez.
- O copo dá mais detalhes – ela respondeu.
Nossas casas eram próximas umas das outras. Clarissa morava no meu prédio e Giovanna, em uma ruazinha sem saída um pouco depois. Íamos para a escola juntas. E foi na mesa de pingue-pongue do playground do edifício que nos reunimos para nosso primeiro contato sério com entidades espirituais.
O ritual começava com uma simples pergunta, repetida duas, três, quatro vezes: “Tem alguém aí?”. Nossos olhos se arregalaram quando o copo finalmente deslizou pelo tampo da mesa em direção ao pedacinho de papel que respondia afirmativamente.
- É claro – disse Giovanna. - O que mais ele poderia dizer? - Nós a silenciamos.
Aos poucos, coletamos informações sobre nosso interlocutor. Era homem. Morrera com 23 anos, de tuberculose. Era certamente bonito, naquele estilo do século XIX que aparecia nos seriados de televisão. Ele não nos disse isso, óbvio, mas era como eu achava que deveria ser. Não conseguia ir embora para o outro mundo porque seu ódio o prendia ao plano terreno: pretendia arrastar consigo o maior número de almas que conseguisse, como forma de expressar sua revolta por ter perecido tão cedo. Quanto mais jovens, melhor.
- Eu não estou gostando disso... - Giovanna voltou a interromper. E, mais uma vez, nós a silenciamos.
Giovanna era a mais medrosa de todas nós. Gritava sozinha quando víamos filmes de terror, mesmo no cinema, onde todos riam e viravam para encará-la tamanho o seu desespero. Após uma sessão de DVD ou de histórias de terror, muitas vezes dormia na minha casa ou na de Clarissa para não ter que andar os dois quarteirões que separava seu prédio do nosso, mesmo que ainda fosse cedo. Logo, foi a que mais sofreu quando o copo começou a formar frases ameaçadoras, que diziam que jamais voltaríamos a ver nossas famílias, que não poderíamos ir embora. Com o rosto encharcado pelas lágrimas, Giovanna se jogou contra a parede, arrancando a mão de cima do copo, trêmula. Clarissa correu para acalmá-la. Um pouco depois, eu também tentei ajudar.
Na noite daquela sexta-feira, dormi com um sorriso nos lábios – o resto da gargalhada com que abri a porta de casa. Como elas eram impressionáveis.
Só fui acordar na hora do almoço, no dia seguinte. Os lençóis estavam tão quentinhos, o colchão, tão macio. Poderia nunca mais ter saído dali. Seria capaz de descansar para sempre com os olhos entreabertos, enrolando-me como um gato nas cobertas. E eu estava com sono. Tinha dormido tanto, mas era como se nunca tivesse encostado a cabeça no travesseiro.
Mas minha preguiça de fim de semana não teve tempo para se dissipar naturalmente. Com um sacolejo fraco, porém nervoso, meu pai me arrancou do meu calmo despertar. Fazia perguntas rápidas e aparentemente desconexas sobre Clarissa. Se eu sabia onde ela estava; o que tínhamos feito ontem; se ela costumava andar com alguém estranho, talvez alguém mais velho; se tinha falado alguma coisa sobre fugir de casa. Mais tarde, enquanto repetia para a polícia as mesmas respostas que dera a meu pai, finalmente caiu a ficha de que Clarissa havia desaparecido sem deixar rastros. E talvez nunca mais voltasse.
Um pensamento correu pela minha espinha, deixando para trás um rastro dolorido e gelado. Sentada no sofá da sala, não conseguia fazer nada além de olhar fixamente para a televisão, incapaz de absorver as imagens que dela emanavam. Não me lembro de ter levantado uma vez sequer, nem ao menos para is ao banheiro. Acho que não comi, também. Eu apenas encarava o que estava à minha frente: a tela, os móveis, o nada, o vazio borrado dos meus olhos, o fantasma da nossa brincadeira. Não tinha mais tato: era incapaz de sentir as almofadas, o chão, as mãos que seguidamente tocavam meu ombro em busca de algum sinal de vida.
Meu transe chegou ao fim por volta das oito da noite, quando o barulho estridente do telefone tornou impossível para mim ignorar o mundo ao meu redor. Talvez eu já soubesse quem estava do outro lado da linha. Talvez fosse isso o que eu estava esperando. Com passadas automáticas como as de um robô, eu caminhei até a cômoda e tirei o fone do gancho. Despreocupada, com a voz abafada pelos personagens da novela, a mãe de Giovanna me pedia para avisar sua filha que já era hora de ir para casa. Ela também não tinha voltado. Acostumados que estavam com as noites que ela passava em minha casa, sua mãe e seus irmãos não deram por sua ausência.
Quando eu desliguei o telefone, meus pais me envolveram em um sufocante abraço, acariciando-me, beijando-me e agradecendo a Deus por eu estar segura em casa. Eles tremiam e fungavam, contendo o choro que não tinham o direito de compartilhar. Eu me desvencilhei de seus braços e, sem uma palavra, enfurnei-me no quarto, batendo a porta atrás de mim. No escuro, sentada em um cantinho empoeirado, ainda catatônica, eu apertei as pernas contra o peito e deixei a primeira lágrima escorrer pelo meu rosto. Então a segunda, a terceira, a quarta...
Eu tinha empurrado o copo.

terça-feira, 16 de julho de 2013

A Legião Urbana nos cinemas e o que a autora acha de tudo isso


Quando Renato Russo morreu, eu tinha 8 anos de idade e cursava o que antes era a segunda série do Ensino Fundamental. Eu não sabia quem ele era. Não era muito ligada em música e o pouco que gostava se resumia a um pequeno apanhado do que as crianças da época ouviam: É o Tchan!, Spice Girls e sei lá mais o quê. Tinha uma fita da Turma da Mônica, também, e uma certa obsessão pelos LPs da trilha sonora de Pantanal. Lembro que – “Sacrilégio!”, gritarão alguns – não dava a mínima para os Mamonas Assassinas. E então Renato Russo morreu, deixando órfã uma legião de fãs da qual eu não fazia parte. Aliás, nem eu, nem (provavelmente) minha amiguinha que, alguns dias depois, apareceu com algumas músicas da Legião Urbana no walkman, acredito que copiadas dos discos dos seus primos adolescentes. E foi assim que eu descobri “Índios”, “Eduardo e Mônica”, “Ainda é Cedo” e várias outras canções de três acordes conhecidas por todo moleque de 13 anos que faz aulas de violão.
Do completo desconhecimento, passei a ser fã de Legião Urbana. Tive quase todos os discos (nunca consegui comprar “O Descobrimento do Brasil”) e tenho, ainda, uma camisa com a letra de “Há Tempos” nas costas, devidamente elevada à categoria de pijama. E assim fui ao longo do fim de minha infância e por toda a minha adolescência. Mais tarde, durante a transição para aquela época da vida que eu me recuso a chamar de idade adulta, desenvolvi um certo asco de Legião. Em parte por uma verdadeira mudança de gostos, mas também devido a um bom e velho processo de negação. E hoje? Bom, hoje, penso que consigo olhar para trás de uma forma mais honesta e emitir uma opinião mais ou menos válida sobre a Legião Urbana. E esta opinião é a seguinte: reconheço a importância da banda para a música brasileira, principalmente para o rock, e ainda gosto de muita coisa que eles fizeram, principalmente dos primeiros álbuns. Acho, por exemplo, que os versos simples de “Eduardo e Mônica” são infinitamente superiores à desnecessária pretensão de “Sereníssima”. Também acho que Renato Russo não era tão rei da cocada preta quanto costumam dizer. Tudo bem, ele escreveu coisas muito legais, mas era só um cara meio intelectual, meio de esquerda da classe média brasiliense, com uma compreensão de mundo que muitas vezes não correspondia ao quão profundo ele queria ser. Mas é claro que ainda fica também aquele restinho de nostalgia. E foi mais para honrar o passado do que qualquer coisa que eu me enfiei no cinema duas vezes quase seguidas para ver Somos Tão Jovens e Faroeste Caboclo.
A cinebiografia do jovem Renato Russo era, de longe, o filme para o qual eu mais tinha expectativas. Pensava em Somos Tão Jovens como uma espécie de Cazuza: uma versão encaretada, mas ainda digna de um ícone da música pop brasileira. E, olha, vou dizer que fiquei surpresa: o tanto que eles conseguiram endireitar Cazuza não chega nem perto do conservadorismo à la Senhoras de Santana que virou a vida de Renato. Não só faltam alguns baseados nos dias do jovem músico em Brasília como o diretor Antonio Carlos da Fontoura conseguiu excluir da história de um homem abertamente bissexual qualquer selinho que fosse entre pessoas do mesmo sexo. Quando Renato conhece sua primeira paixonite masculina, os dois dão uma volta, comem um podrão e terminam a noite com um... abraço. Se colocarmos a cena em contraste com a insinuação bem clara de sexo entre o cantor e sua amiga Ana Cláudia – uma fusão de várias personagens reais –, chegamos a uma diferenciação tão grande entre relacionamentos hetero e homoafetivos que Fontoura poderia ganhar o troféu Moral e Bons Costumes das mãos do líder da Tradição, Família e Propriedade.
Renato era chato. E conservador?
Mas o filme tem alguns pontos positivos. É divertido ver a turma de Renato “dançando” na Rockonha e a semelhança entre os atores e os personagens que interpretam chega a ser absurda em determinados momentos. Não apenas Thiago Mendonça é a cara e a voz do líder da Legião como Ibsen Perucci poderia substituir Dinho Ouro-Preto em shows do Capital Inicial sem que ninguém percebesse. Conrado Godoy também é o próprio Marcelo Bonfá, assim como Nicolau Villa-Lobos tem todo o jeito de Dado, embora por motivos mais óbvios que seus colegas de elenco. Entretanto, cinema não é concurso de sósias e o cuidadoso casting acaba sendo desperdiçado em uma direção de atores fraca e um roteiro sem personalidade. A trama se desenrola quase como uma série de episódios, em que não temos tempo nem informações o suficiente para conhecer qualquer personagem que não Renato, que soa muito mais chato e superficial do que a forma como certamente gostaria de ser retratado. E, no afã de fazer trocadilhos e piadinhas com títulos e trechos de canções da Legião Urbana, os diálogos soam vazios e falsos. É constrangedor o momento em que Renato diz para os amigos que está com um “tédio com um T bem grande”, abrindo as comportas para uma imensa cascata de referências desnecessárias.
Com Faroeste Caboclo, a coisa foi bem diferente. Tinha certeza de que ia assistir a uma masturbação de fã, feita por um desses caras que anda o tempo todo com o violão no ombro ou por algum mané que grita “é a porra do Brasil” no meio de “Que País é Este?”. Quando as luzes se apagaram, virei para o lado e perguntei baixinho para o meu namorado: “Você também não tem expectativa nenhuma para este filme, né?”. A resposta? “Nem um pouco”. Porém, a cada 24 quadros que passavam pela tela, nossa predisposição ao ódio ia se esvaindo. Se quase arranquei o estofado da cadeira quando os primeiros acordes da canção de Renato Russo apareceram para embalar uma cena do pequeno João de Santo Cristo com sua mãe, foi um alívio perceber que a música como um todo foi deixada apenas para os créditos finais e não foi usada como recurso fácil e sentimentalista em nenhum momento do filme. Também foi fantástico ver o esforço colocado no desenvolvimento de João, Jeremias, Maria Lúcia e todos os outros personagens acrescentados pelo diretor René Sampaio e pelos roteiristas Victor Atherino, Marcos Bernstein e José Carvalho à história de Renato Russo. Se a música tornava possível uma certa unidimensionalidade através de frases como "desde criança só pensava em ser bandido" e "desvirginava mocinhas inocentes e fingia que era crente mas não sabia rezar", ela foi cuidadosamente evitada. João de Santo Cristo é muito mais complexo e amável do que o criminoso por natureza salvo pelo amor da Legião Urbana e Jeremias continua sendo asqueroso e detestável, mas sem o toque Coração Gelado de Renato, que faz de seu vilão tão cruel que ele praticamente se casa com Maria Lúcia só de sacanagem. E toda a tensão construída através dos três personagens principais tem um final mais do que adequado. O aguardado duelo da Ceilândia não tem pipoqueiros, nem câmeras (e nem ofensas sexistas, graças), mas tem uma aridez e um colorido que provavelmente não levariam Sergio Leone às lágrimas, mas o deixariam bem contentinho.
Maria Lúcia e João de Santo Cristo (Fabrício Boliveira)
Mas são as mudanças feitas na história o verdadeiro trunfo do filme, e não suas referências e seu apuro visual. O roteiro deixa de lado as partes didáticas de Renato a respeito do contexto social da época e deixa o Brasil dos anos 80 fluir de forma mais natural para dentro da trama. Ao invés do "senhor de alta classe com dinheiro na mão", temos uma rápida montagem inicial para retratar a agitação política do fim da ditadura. Ao invés de querer "falar com o presidente para ajudar toda essa gente", João sabe muito bem que é prisioneiro de sua condição, segurando edições do Correio Braziliense para sair na foto e provar que ainda está vivo. O filme também faz uma série de mudanças no universo dos personagens. Sem muita história na canção original a não ser ter ganhado o coração de João de Santo Cristo, Maria Lúcia é transformada na filha de um senador, apaixonada por um homem que jamais será aceito pelo meio racista e elitista em que vive. A jovem interpretada por Ísis Valverde também não é a "filha da puta sem vergonha" que engravida de Jeremias por supostamente não ter caráter, mas uma mulher que aceita as chantagens de um poderoso traficante para salvar a vida de seu amado. Aliás, a transformação de Jeremias em chefão do crime organizado na área nobre de Brasília também é muito bem vinda. Afinal, se tem uma coisa que não faz sentido é um sujeito aparecer do nada e derrubar um traficante tão bem estabelecido quanto João de Santo Cristo sem enfrentar qualquer problema. Com algumas mudanças, os personagens de Renato Russo funcionam de um jeito que eu nunca achei que fosse possível. Não são perfeitos, claro: Maria Lúcia poderia não ser tão Madonna sofredora e Jeremias poderia ser um pouquinho mais humano, às vezes. Mas ainda assim são bem construídos o suficiente para tirar o medo do começo da sessão e garantir um puta filme. E um bom faroeste, até.
Jeremias (Felipe Abib)

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Ferida


No primeiro dia, ela cutucou a ferida com as unhas sujas da poeira do chão do quarto. Era pequena, apenas um pontinho vermelho de sangue e carne bem na curvinha do joelho. Ela não sabia de onde ela tinha vindo. Talvez fosse resultado de um tombo de leve na aula de educação física, ou a marca deixada por algum caquinho de vidro esquecido pela casa. Era tão pequenina... Mas, ainda assim, doía. Como um corte de papel que esconde seu incômodo sob uma aparência quase imperceptível, a ferida ardia e latejava a cada toque. Era melhor deixar para lá, então. Não encostar. No dia seguinte, ela provavelmente já estaria coberta por uma casquinha, que seria cuidadosamente arrancada para dar lugar a uma rosada cicatriz.
No segundo dia, ela foi lembrada da marca em sua perna enquanto estava no banho. A água fresca parecia atear fogo naquele pedaço da sua pele. Com o rosto retorcido pela surpresa e um gemido abafado, ela viu que a antes diminuta ferida agora se transformara em um machucado de verdade, daqueles deixados por um tombo no chão de cimento puro, sem qualquer tipo de cobertura. Recostada na parede, ela levantou e dobrou o joelho para dar uma olhada mais cuidadosa na ferida. O esticar da pele tornou ainda mais intensa a dor causada pela estranha mácula que parecia estar cicatrizando ao contrário.
No terceiro dia, ela mostrou a ferida para a mãe, em busca de respostas para as perguntas que não queriam calar. Por que ela não fechava? Por que ficava aumentando sem parar? De onde ela poderia ter vindo? Pois devia ser um machucadinho de nada que ganhou outras proporções de tanto ela futucar. Era só pegar um vidrinho de mertiolate no armário do banheiro, passar um pouco no joelho e deixar a ferida quietinha que ela com certeza ia passar. Foi esta a resposta que ela ouviu. Despreocupada. Insuficiente. Decepcionante. Mas não havia mais nada a fazer. Com a pazinha áspera, ela espalhou o remédio sobre a chaga e esperou que ela diminuísse. Leu, dormiu, viu televisão. Tomou cuidado para que nada encostasse no machucado, nem mesmo seu olhar. Tentou esquecer que ele estava lá. À noite, procurou as melhoras prometidas por sua mãe e pela companhia farmacêutica. A ferida continuava no mesmo lugar e não tinha diminuído nem um tiquinho. Na verdade, a impressão que dava era de que ela só havia feito crescer, assim como nos dias anteriores. Mas talvez fosse só isso, mesmo: impressão...
No quarto dia, ela foi acordada por gritos nervosos que ordenavam que ela levantasse da cama. Uma caneca de achocolatado deixada sobre o chão da sala – não tinha nada que ser deixada ali! – estava cheia de formigas. Com os olhos arregalados de susto, ela pulou para o chão e correu para ouvir as broncas e levar sua louça suja para a cozinha. Não deu atenção para a ferida, que continuava lá, e agora se espalhava por toda a parte inferior do seu joelho. Não deu atenção para o fato de que mancava, tamanho o incômodo causado pelo machucado. Não deu atenção para a dor, que corria por suas terminações nervosas, mas parecia incapaz de chegar ao cérebro. A única coisa que importava era a caneca suja de achocolatado largada no chão da sala, bem em frente ao sofá. Francamente, já era hora dela tomar tenência nessa vida e começar a crescer.