Primeiro eles lhes
tiravam a visão. E não parecia tão ruim. Muitas pessoas são capazes de viver sem
enxergar. Depois, a audição lhes era arrancada. E, ainda assim, não parecia tão
ruim. O olfato era o próximo da lista, seguido pelo paladar, e então já se tornava
uma árdua tarefa fazer sentido do mundo ao redor. Por último, eles destruíam o tato.
Mas não completamente. Tinham ao seu lado médicos e cientistas altamente treinados,
que deixavam para trás o suficiente para que fosse possível cambalear ou pelo menos
se arrastar pelo chão. Porém, o menor toque, a mais gentil carícia ou até mesmo
a maior das dores já não alcançavam mais o cérebro dos prisioneiros.
Sentir
era proibido por lei. Não o sentir das mãos e dos pés, mas aquele que se
origina em nossas cabeças, muito embora alguns insistam em dizer que vem do
coração ou da alma. Amor, ódio, alegria, tristeza, medo, coragem, a calma de um
abraço ou um simples frio na barriga. Tudo era passível de punição. Era aceitável,
é claro, que sentíssemos uma pontada desses sentimentos, de vez em quando. Afinal, não
havíamos deixado de ser humanos. Entretanto, era preciso suprimir o desejo, a
vontade, a dor e a solidão em nome de um bem maior. O importante era funcionar,
sem qualquer interferência de algo que pudesse colocar uma trava no moto contínuo
de ações pragmáticas que mantinha nos eixos o mundo que eles haviam planejado. Quem
não funcionava, quem não se controlava, era castigado com a remoção de todos os
canais que possibilitam a transmissão de sensações e a criação de sentimentos
em suas mentes. Presos, sós, dentro da completa ausência, deveriam expiar seus
pecados e contemplar a beleza pura e geradora do vazio.
Eu
era o seu vigia. Do alto de uma torre pintada de branco, eu observava os
condenados que habitavam a prisão a céu aberto coberta de terra e sujeira. Homens
e mulheres, jovens e velhos, completamente nus, eles vagavam de um lado para o
outro em graus variados de falta de percepção. Os novatos gritavam, na
esperança vã de que alguém lhes daria ouvidos, de que alguém os tiraria dali. Com
o tempo, suas vozes eram silenciadas e restava-lhes apenas um urro selvagem e
sem vida. Um eco do que um dia haviam sido. Os mais antigos tropeçavam uns nos
outros, ou em suas próprias pernas, alheios à urina e às fezes que lhes
escorriam pelo corpo. Alguns engatinhavam, ou simplesmente rastejavam, e não
eram poucos os que se deixavam tombar à espera da morte por fadiga, doença ou
por uma fome que já não percebiam. Um velho que precedia a minha contratação
era o mais longevo de todos os prisioneiros. Passava a maior parte do dia
sentado em um canto e saía apenas para comer. O almoço e a janta eram jogados
por um cano ao meio-dia e às seis da tarde, mas, como muitos, ele já não tinha
mais noção de tempo. Às vezes conseguia encontrar um pedaço de frango ou uma
maçã estragada, mas não era raro se contentar com poças de vômito, excrementos
e partes de outros detentos cujos corpos eram esquecidos em meio ao caos. Esta
rotina era o que lhe permitia sobreviver. Não entendia por que ele a criara. Hoje,
entendo menos ainda. Sem qualquer contato com o mundo exterior, ele pelo menos
era imune ao patético teatro de violência protagonizado pelos que ainda não
tinham passado por todas as etapas do processo de dessensibilização. Como
bestas, atacavam os mais fragilizados, que muitas vezes sequer se davam conta
da agressão. Deixavam para trás um rastro de adolescentes que não conseguiam se
levantar; de mulheres que definhavam, incapazes de sentir os fetos que apodreciam
em seus corpos; de crianças que nasciam mortas e eram rapidamente consumidas
pelos mais velhos. Já não eram humanos, já não eram animais – eram feras mitológicas,
monstros criados em
laboratório. E eu era o seu vigia. E, um dia, sucumbi ao nojo
e ao horror, às vistas dos meus companheiros.
Trancafiado no silêncio, ninguém nunca
ouvirá minha história.
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